Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp. 437-439. Publicada, originalmente, na Revista da Semana, de 15/05/1954.

Como cheguei ali, até hoje não sei. Lembro-me de que desci de um táxi e comecei a andar. À minha frente, os Andes, envoltos em nuvens espessas, eram tão irreais que pareciam cenário de fotógrafo. Fazia frio e a maioria das casas estava de janelas fechadas. Hoje, não sei dizer se era praça ou avenida, mas havia árvores em fileiras certas e um passarinho ou outro piava, sem alegria, uma vez mais perto, outras vezes mais longe de mim. Por muito tempo, fui a única pessoa existindo naquele bairro de Santiago do Chile, caminhando sem rumo ou pressa e, em seguida, sentada num banco de pedra. Depois, passou um ônibus com alguns poucos passageiros e um deles, que havia feito sinal para descer, arrependeu-se e mandou o chofer continuar. 

O mugido da máquina em primeira marcha quebrou, de certo modo, a integração a que eu me dera no silêncio e no abandono da rua. De repente, apontou uma mulher na esquina, vestindo calças e suéter negros, com as mãos nos bolsos, andando com um jeito largado. Não ia para canto nenhum. Vinha andando, somente. Mais de perto, pude ver que tinha cabelos castanhos, olhos claros e era bonita. Dava-se-lhe mais de 30 anos ou, se tivesse menos, a melancolia do olhar e os vincos da face deviam ser marcas de algum desencanto. Passou e disse "olá", olhando-me com desinteresse. Atravessou a rua devagar, voltou da metade e, parando à minha frente, quis saber se tinha cigarros, se eram negros ou rubros. Os meus eram negros, feitos com um fumo ardoso e molhado. Recusou e sentou-se ao meu lado. Seu nome era Silvia, Maria Silvia. Viera menina de Buenos Aires e seu pai tinha negócios em Sur de Chile. Depois ficou pobre, depois Silvia foi trabalhar numa vindima, depois casou e, quando fez dois anos, o marido adoeceu e morreu de tísica. Achava que a vida era lenta e sem grandes alegrias. De bom grado, cortaria os pulsos ou beberia um veneno forte, se não tivesse uma filha. A filha começou a descrever, rindo de leve à flor dos lábios – “tem os meus olhos e o meu nariz; no resto, é igual ao pai”. Baixou a cabeça e começou a riscar o chão com um galho seco que não escrevia nada. De repente, jogando os cabelos para trás, encarou-me e perguntou se eu queria ver a menina. A casa ficava a duas quadras do banco de pedra onde estávamos. Era mais um apelo que um convite. Fui.

No caminho, dissemos poucas coisas e certamente não rimos de nada. Paramos em frente a um portão de ferro gasto e, num gesto suave, pediu-me que entrasse. Atravessamos um pequenino e maltratado jardim, subimos quatro degraus e esperei, no terraço, que ela abrisse a porta. Experimentou uma primeira chave – não era. A segunda, também não, e a terceira não havia (era). Desculpou-se, confessando distração eterna, calcou uma campainha e uma mucama morena nos abriu a porta. Dessa vez entrou primeiro e apontou a cadeira onde eu devia esperar. Foi para um quarto ao lado e, instantes depois, chamava dizendo: “Senhor, por favor”. Silvia estava em pé à beira de uma caminha de criança. Pareceu-me mais pálida e os vincos do seu rosto mais acentuados. Apontou a cama e disse, baixando os olhos: “Es esta”. Olhei, os lençóis estavam desarrumados e não havia nenhuma criança naquela cama. Num instante, compreendi que não devia perguntar nada, nem estranhar coisa alguma. E ficamos os dois, de olhos baixos, até que ela andou em direção à sala, pedindo, com um gesto de cabeça que eu também fosse.

Não havia mais nada a dizer. Era urgente sair dali, sozinho, ganhar a rua, livrar-me depressa de tudo aquilo que era realmente ruim para a minha sensibilidade. Eu não queria saber de nada, como foi, por que tinha sido. Mas era importante e necessário sair sem transparecer o que eu estava sentindo ou pensando, em respeito ao drama que aquela mulher me entregava, fazendo certa questão que eu compartilhasse dele.

Era importante que eu saísse com a serenidade que trouxera e não tentar consolar, nem fazer apelos de resignação. E saí, deixando um olhar de calma sobre o rosto de Silvia, que ainda era belo. Vira antes, sobre a mesa num quadrinho, o retrato de uma menina rindo.

antonio-maria