Fonte: Coleção Melhores Crônicas: Maria Julieta Drummond de Andrade. Seleção e prefácio de Marcos Pasche, Global, 2012, pp.250-253. Publicada no livro Um buquê de alcachofras, 1980.

Inteiro-me, pelo obituário do Globo, da morte de Regina Maria Rangel Rios, vítima de um acidente automobilístico no mês passado. Carioca, assistente social, deixa viúvo e dois filhos; morava em Laranjeiras. A notícia, tão curta (e tão ampla), me paralisa: não há dúvida, é mesmo Regina, a amiga profunda que encontrei na Faculdade Católica, quando ambas estudávamos Didática. Desconheço todos os detalhes do seu fim e procuro não imaginá-los, pois nada quero saber além do que já sei e não entendo: Regina morreu. Fecho o jornal, fecho os olhos e passo a viver Regina e sua morte, Regina e sua vida, as duas igualmente discretas e silenciosas. Nem me revolto: durante os muitos anos em que nos vimos pouco e nos quisemos sempre, tentei aprender com ela a aceitar as coisas como elas vêm, sem gritos nem indignação.

Já não me lembro de como nos aproximamos uma da outra: foi há tanto tempo... Muitos alunos novos haviam ingressado na turma, e Regina era um deles; com certeza um dia fizemos algum comentário (eu rebelde, contestatária na época; ela calada, perspicaz, intensa em sua aparente serenidade), e nos entendemos. Tornamo-nos inseparáveis. Estudávamos juntas, íamos ao cinema (como nos emocionamos com Barrault, vestido de pierrô, apaixonado por Arletty em Les enfants du paradis), conversávamos, conversávamos. Regina me entendia sempre, apesar da nossa forma diferente de ser, e nunca procurou modificar-me: se eu lhe pedia, buscava então, com infinita cautela, acalmar meus pensamentos arrebatados. Ouvia, sobretudo. Era tão modesta, que quase não falava de si mesma. Só inquirida, animava-se a alguma pequena confidência, que eu recebia como um presente especial. Não ia à praia, não dançava, mas gostava de reunir-se com o grupo de jovens intelectuais que rodeavam mestre Alceu e frequentavam o São Bento. Católica praticante, respeitava minha falta de fé e sorria das boutades irreverentes com que adolescente pretensiosa eu a desafiava. Suas convicções eram tão firmes, seu carinho por mim era tão verdadeiro, que ela não precisava argumentar para manter-se fiel à fé e à amizade.

Resolvi concorrer a uma bolsa de estudos para a Sorbonne. Regina acompanhou-me durante os trâmites, que não eram simples, animando-me constantemente. Sua alegria, quando obtive o que desejava, foi maior do que a minha. Quando de repente, pouco antes de embarcar para a França, mudei de ideia e decidi vir definitivamente para Buenos Aires, foi ela a única pessoa que não quis influenciar-me. Percebi que minha determinação lhe era penosa, mas o respeito que tinha pela personalidade alheia era de tal modo autêntico que, com a mesma boa vontade e dedicação, passou a ajudar-me nos preparativos apressadíssimos que a mudança de viagem acarretou. Deixei-lhe de lembrança um vestido de flanela roxa, quase novo, de que ela gostava; soube depois que o usou durante várias temporadas. Ofereceu-me uma caixinha chinesa, que adorava, de esmalte azul, com mínimos desenhos caprichosos. Tenho-a até hoje numa estante e, neste momento em que escrevo, aqui a meu lado; de vez em quando interrompo o trabalho para passar a mão sobre a sua superfície lisa e fria: sinto-a bonita, delicada e preciosa como a alma de Regina.

O tempo e a vida foram se acumulando. A princípio nos escrevíamos regularmente: ela sempre atenta, de longe, às mudanças radicais por que fui passando. Um dia avisou-me que conseguira uma bolsa para Londres. Conservo suas cartas, escritas em letra arredondada e firme, nas quais me fala da solidão que a feria na cidade que tanto ambicionara conhecer. Epistolarmente, Regina tinha menos pudor em expressar suas dúvidas e perplexidades, mas – gentil como era –, depois de uma carta mais deprimida, e antes mesmo de eu ter podido respondê-la, enviava imediatamente outra, em que procurava desfazer a preocupação que porventura me houvesse causado. De volta ao Brasil, perdeu o pai (ouço até hoje a voz lenta e comovida com que me agradeceu o telefonema que lhe dei, daqui, na ocasião) e continuou a trabalhar como assistente social. Depois, através de um bilhete conciso, comunicou-me que ia casar-se.

Conheci depois Gilberto, o marido, e, no decorrer dos anos, Paulo e André, os meninos louríssimos que tiveram. Que estimulante espetáculo o de Regina mãe, companheira a um tempo séria e compreensiva dos filhos, dialogando permanentemente com eles, nunca lhes pedindo mais do que podiam fazer, embora sabendo conduzi-los ao ponto exato que, cada um à sua maneira, podiam atingir. Ela, que fora filha única e solitária, soube dar-lhes uma casa alegre e luminosa, centro de reunião de todos os escoteiros da paróquia, que ali se juntavam para discutir, combinar acampamentos e devorar os bolos e sanduíches preparados nos fins de semana.

Quase não nos víamos ultimamente. Quando eu chegava ao Rio, no verão, ela em geral havia ido para Teresópolis. Falávamos pelo telefone e era difícil marcar um encontro. Uma tarde ou outra, se acontecia ela descer da serra, dávamos algum passeio de automóvel e retomávamos então o fio das conversas interrompidas na Faculdade: pouco nos contávamos sobre a família, o trabalho, as pequenas situações do quotidiano –  nosso assunto era antigo e eterno, a vida em si, independente das circunstâncias e acontecimentos. Contudo, às vezes, nosso contato era maior. Certo sábado fui visitá-la, e desabou um desses dilúvios cariocas, que ameaçam engolir a cidade. Regina e Gilberto pretenderam levar-me em casa; ficamos presos em Botafogo e passamos a noite, descalços e famintos, tentando inutilmente abrigar-nos sob uma marquise gotejante. Já amanhecia quando pudemos regressar a Laranjeiras, onde Regina me preparou um chocolate delicioso e uma cama no quarto dos meninos. O carro, praticamente inutilizado, passou um mês na oficina. Regina não fez o menor comentário ágrio, e ainda achou graça no episódio.

Este ano não a vi em fevereiro. Estou certa, contudo, que ela devia estar me acompanhando através desta coluna, satisfeita de ter notícias minhas pelo jornal. Não sou mulher de fé, já disse, mas acredito em Regina. Imagino-a, e com jeito doce e reservado que sempre teve, com o rosto surpreendentemente parecido ao de Jeanne Moreau, lá das campinas de sossego por onde há de estar, sorrindo aliviada hoje, por eu ter finalmente aprendido a resignar-me.

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