Fonte:  Cadern B, coluna "O homem e a fábula", Jornal do Brasil, de 27/09/1961.

Meus amigos, boêmios de Copacabana, habituaram-se ultimamente ao uso do dexamil e da dexedrina, pílulas que excluem sono e fome, oferecendo em troca um estado de entusiasmo próximo da histeria. O dexamil é uma pílula verde em forma de coração e por isso é geralmente designado como coração verde; a dexedrina é uma cápsula transparente dentro da qual podemos ver bolinhas brancas, azuis e vermelhas, semelhantes à ofuscação e frisson que delas se espera quando a cápsula explode no estômago. Há uma lenda segundo a qual não são tóxicos, confirmada pelos médicos e utilizada pelos viciados para aliviar suas consciências. As pessoas gordas e as senhoras grávidas se servem dessas pílulas quando precisam passar algum tempo sem comer. O dexamil se tem mostrado eficiente quando se trata de incitar ao trabalho as pessoas sem coragem e disposição. Seu efeito, segundo se diz, se prolonga por vinte e quatro horas. Sobrevém então um momento desagradável: náusea, suor frio na testa e um sentimento de derrota sem motivo aparente. Enfraquecido fisicamente e alquebrado moralmente, você recorrerá a uma nova pílula. Depois disso diminuirão sensivelmente os seus problemas na vida real: seja qual for a situação em que se encontre, um coraçãozinho verde lhe infundirá confiança em si mesmo e você contemplará com alegria o mundo hostil, não tendo mais desejo nem necessidade de enfrentá-lo.

Participei uma vez de uma festa que durou alguns dias. No meio da noite, quando ninguém mais podia manter-se em pé, um criado distribuía dexamil. Alguns só precisavam de uma pílula; outros tomavam duas; alguns outros estavam sempre providos de corações verdes e tomavam diversos por dia; embora teoricamente o efeito de um deles se prolongue durante 24 horas: E uma vez namorei uma garota que transformou minha vida num inferno. A intervalos extraordinariamente curtos ela parava de beber álcool e ingeria um coração verde com um gole de água. Isto sempre me surpreendeu: quem é viciado em dexamil, e além disso costuma tomar pilequinhos diários, faz questão de engolir a pílula com água. Até hoje desconheço o sentido de semelhante ritual. Mas como eu ia dizendo, a minha namorada não dormia nunca, e quando eu finalmente fechava os olhos, literalmente desmaiado, ela começava a reclamar que não era amada, que eu ia dormir enquanto ela ficaria acordada e abandonada, etc. Sacudia meu corpo, acordava-me, insultava-me, chorava, mas eu sou um contumaz dorminhoco, de maneira que me livrei dela alguns dias antes de enlouquecer. Aliás, ela sempre se admirava com a minha resistência ao coração verde: embora tomasse às vezes duas pílulas ao mesmo tempo, para lhe mostrar minha boa vontade e minha ternura, logo depois eu mergulhava no mais profundo sono.

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