Fonte: Maria Julieta Drummond de Andrade; (Coleção Melhores Crônicas). Seleção e prefácio de Marcos Pasche. Global, 2012, pp.104-107. Publicada, anteriormente, em Um buquê de alcachofras, José Olympio,1980.

Fim de festa, fim de noite, todo mundo com alguns uísques a mais (ou a menos). Um outro casal ainda insistia em dançar e já havia quem dormisse pelos sofás e almofadas, quando, num grupinho melancólico reunido no escritório, alguém propôs:

– Vamos brincar de um jogo novo? Cada um conta uma história de amor. Mas tem que ser de verdade, vivida, inventar não vale.

Uns toparam, a maioria protestou ou não entendeu. Afinal Sofia começou:

“As história de amor são muito complicadas, boas são as historinhas. Tenho uma linda: aconteceu comigo, quando eu estava me separando do Lulu. Separação é sempre terrível, mas a primeira é a pior de todas, a gente fica destruída. Vocês conhecem o Lulu: com aquela mania de intelectualizar tudo, ele fingia que não estava ligando, nem sequer foi para a casa da mãe ou para algum hotel. Eu estava esperando o apartamento novo ficar pronto e não tinha para onde ir com a Glorinha. Ele é que devia ter tido a prudência ou a gentileza de sair, mas nada: continuava morando conosco, de qualquer jeito. Eu sabia que no fundo ele devia estar sofrendo feito eu. Só que, diante daquela muralha de indiferença, eu não queria dar o braço a torcer e bancava também a superior, ficava sorrindo, fazendo gracinhas na mesa, diante das visitas. Pois o Lulu fazia questão disso: recebemos até eu começar a preparar os caixotes da mudança. Ninguém entendia nada, e a Glorinha, coitadinha, que era um pingo de gente na época, ficava olhando para nós dois, sem saber que diabos de pais malucos eram aqueles. Que situação, putz! Um esforço desgraçado dentro de casa, a preocupação com a menina, que cismou de não ir mais ao colégio, as empregadas com ar de velório, a luta com os pintores e eletricistas, que não terminavam nunca o meu apartamento, e aquela aflição dentro de mim, me corroendo. Quanto sofrimento absurdo: teria sido tão mais simples a gente gritar, xingar, quebrar coisas na cara um do outro – ou pelo menos emburrar e não abrir a boca. Mas não: tudo tinha que ser feito na maior civilidade...

Afinal chegou o momento, tão temido e esperado, da mudança. O Lulu sempre na dele, não tomou o menor conhecimento da confusão, eu separando as xícaras, os livros, os lençóis, essa transa horrorosa, e os homens embalando com aquela expressão desinteressada de coveiros enterrando defuntos dos outros. Tudo ficou pronto num sábado à noitinha; o caminhão vinha na segunda cedo, retirar a tralha e os móveis. Tomei um banho de espuma, um Valium e me meti na cama. No dia seguinte, o Lulu saiu com a Glorinha e eu me mandei para São Conrado, para a casa de Tatiana, minha prima. Passei a tarde inteira na piscina, numa angústia total, com um nó na garganta que quase não me deixava falar, mas querendo dar uma de mulher bacana, dona do seu nariz. A turma toda era amiga e procurava me dar força de maneira discreta, sem tocar no assunto. Tinha lá um rapaz do sul, que eu não conhecia e que nem conversou comigo, só “muito prazer, como vai” – um sujeito feio, com cara de índio, muito magro e caladão, que estava de passagem por aqui.

Quando saímos, soube que o rapaz ia jantar com um pessoal quase vizinho meu: ofereci para levá-lo, e senti alívio quando aceitou: assim pelo menos eu não ficava tão sozinha com o meu desamparo. Fomos batendo um papo qualquer até o edifício onde ele ia ficar. Aí eu falei depressa: “Amanhã de manhã vou me separar do meu marido, e estou morta de medo”. Ele me olhou sossegado e respondeu: “Se quiseres eu te acompanho até a tua casa”. Achei que ele ia se atrasar. “Não faz mal, é um minutinho só” – ele disse sem descer do carro. Concordei e não falei mais nada; guardei o Fusca na garagem, agradeci e me despedi. Entrei no elevador, mas não tive coragem de apertar o botão. Abri outra vez a porta e vi que ele estava parado, de costas, na saída do prédio. Ficamos assim alguns instantes: eu sem saber que fazer, ele imóvel. De repente, Tito (ele tinha um nome incrível, Tito Lívio Pereira – coisas do pai que era professor de latim, eu soube depois), de repente Tito deu meia-volta, me agarrou pela mão e disse: “Vamos tomar uma cerveja”.

Aceitei na hora. Entramos no primeiro bar que encontramos, e aí comecei a chorar. A princípio eu ainda sentia remorsos de ele estar dando bolo nos amigos, mas depois nem me lembrei mais do tal jantar. Contei-lhe tudo, pus minha alma em cima daquela mesinha; ele só me ouvia e acariciava meu rosto. Quando me senti melhor, quis voltar para casa. Tito me deu o braço e resolveu: “Vamos primeiro dar uma volta pelo quarteirão. Um dia desses embarco para uma ilha e quero te contar como ela é”. Demos mil voltas, e fui sabendo como era a ilha inventada, uma terra genial, sem problemas nem dificuldades, pois ele ia ser capitão-hereditário de lá e pretendia baixar uma lei proibindo a infelicidade e a insatisfação. Era tão engraçado, tão bom ouvir aquelas histórias doidas no meio da noite, que eu parei de chorar e tive vontade de rir.

Finalmente chegamos outra vez ao edifício, e a cena anterior se repetiu, igualzinha, na porta do elevador. Quando ele me puxou de novo pela mão, eu só estava pensando na ilha, imaginando, com os detalhes mais absurdos, a vida que nós dois íamos levar lá. Achamos outro bar, tomamos um uísque. Então ele parou de falar na ilha e me disse que estava casado com uma moça ótima, tinha três filhos, e viajava no dia seguinte para Bagé. Contou a vida inteirinha.

Descobrimos depois um restaurante que estava fechado, mas ele deu uma gorjeta ao maître e conseguimos que nos servissem uma sopa de cebolas divina, a melhor que já provei até hoje. Na saída – estava amanhecendo – Tito me abraçou, me beijou muito forte na boca, não sei se com paixão ou com ternura, e me perguntou: “Queres voltar para casa ou vir para o meu hotel?” Eu preferi ir para casa. Pela terceira e última vez nos despedimos em frente ao elevador.

Subi, entrei no chuveiro, tomei café e fiquei na sala esperando o caminhão da mudança. Por sorte a Glorinha não estava, tinha passado a noite na casa da avó, e o Lulu dormia ou fingia dormir. Às 7 os homens chegaram”.

– E o Tito? – perguntamos os que ainda escutávamos no escritório.

– Nunca mais vi, nem tive notícias dele. Eu não disse que a minha era uma historinha de amor?

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