Fonte: Coleção Melhores Crônicas: Maria Julieta Drummond de Andrade. Seleção e prefácio de Marcos Pasche. Global, 2012, pp.292-294. Publicada no livro O valor da vida, 1982.

Há coisas belas na vida, raras, fulgurando entre os cascalhos e precipícios do caminho. Há coisas indiferentes (a maioria), mas, para gáudio de cada um, tilintam coisinhas lindas na memória e no nosso dia a dia.

Explico-me:

Coisa linda é, para mim, o jeito que os gatos novos têm de recuperar o instinto selvagem num apartamento, diante de um barbante ou de um fio pendurado, das franjas de uma cortina balançando. Erguem a cabeça, com a pupila fixa, enrijecem o corpo, mexem as pernas traseiras, concentram-se e se atiram sobre o suposto inimigo, como se se tratasse de caçada perigosa. Frustrados com a falta de reação da presa, afastam-se, disfarçando, e regressam logo para o outro bote, inútil e tenaz.

Brincar com bebês muito tenros é coisinha linda: se estão limpos e de barriga cheia, riem, batem as pernas e, ao não poder controlar a direção do olhar, ficam completamente vesgos quando nos encaram.

E que coisinha linda o início, menos ainda, o esboço das primeiras folhinhas semibrotando numa planta que andava triste, sem viço. Roçá-las – atenção!, muito levemente – com a ponta dos dedos ou dos lábios é lindinho também.

Outra coisinha linda: acordar pensando em dia de semana e extrair do fundo da consciência a noção de que é domingo – ninguém esperando nada de nós – e voltar ao sono com a alma serena, sem remorso.

Aliás, domingos de chuva: que coisinha mais linda ficar em casa, de suéter, contemplando a líquida cortina. E, encaixada nesta, outras coisinhas bem lindas; uma barra de chocolate (suíço), comido devagar, cada pedaço dissolvendo-se na boca imóvel; goles de conhaque (Napoleón), esquentados entre as mãos, na língua, solenemente.

Coisinha linda, lindíssima, o cheiro do mato quando nos aproximamos de qualquer lugar fora da cidade em que é possível identificar, pelo olfato, a mistura de eucaliptos, folhas em geral, terra e insetos que sobraram da infância. (E a maresia? Cheirinho lindo.)

Outras perduram no pensamento. Saudades da manhã em que a praia de Copacabana era vazia e havia tempo e espaço para cavar buracos à beira-mar. Juntar conchinhas e tatuís, que apareciam quando as ondas, depois de arrebentar, retornavam ao mar; levar tudo para casa num balde cheio de areia úmida. Comer os bichinhos, nunca: a coisinha deixaria de ser linda, pois lindo mesmo era devolvê-los ao mar, no dia seguinte, vivos e velozes.

As tartaruguinhas que estou criando são coisinhas muito lindas, com a barriga sulcada de linhas regulares e coloridas, o casco idem, com outros desenhos em outras tonalidades. Uma é boba, a outra esperta. Quando brigam, a esperta persegue a boba, que só atina em esconder-se dentro de um sapato do homem. Não sei dizer qual delas é mais coisinha: acho que ambas são lindinhas, duplamente.

Ver os canários de Nena bicarem, da gaiola, com a maior cautela, o nariz da amiga... O papagaio pelado, que tem mania de arrancar as plumas e ainda enfrenta a dona com o olho redondo e desafiante... Resta-lhe apenas uma vaga plumagem debaixo do pescoço, mas, despido e estranho, é, junto aos canários, coisinha das mais lindas.

Brincos pequenos, argolinhas, bolinhas de ouro com miçangas, travessinhas para o cabelo – toda essa bijuteria miúda que se usa agora, coisinhas lindas, que enfeitam e são boas de passar a mão. Pérolas pequeninhas, então, que coisinhas lindas, sobretudo entre os dedos e, devagarzinho, entre os dentes. Como as uvas – tão, tão lindas.

Vestidos de seda pura brilhante, sais godês de gase, mangas plissadas, jérsei aderindo à pele, blue jeans frouxos, de tão surrados – ah, lindurinhas.

Banho de chuveiro, em dia de calor, e de banheira com espuma perfumada, fofa, fofa, no inverno – coisinhas lindas. E bem lindos, até demais, os mergulhos de verão no mar quase morno, salgadíssimo, a água escorrendo pela nossa cabeça, que fica lisa, lustrosa, ardendo no rosto, no corpo inteiro.

Mas haverá tão lindas coisinhas quanto os mínimos rituais que precedem a revelação amorosa, quando tudo ainda é mistério: os primeiros telefonemas, os primeiros almoços, a primeira vontade do que ainda não foi provado? Depois sobram algumas, talvez as mais lindas coisinhas deste mundo: a orelha do amado, beijada do lado de dentro; o momento exato em que os cravos , ao serem espremidos, saltam das costas do mesmo; cócegas na planta do pé; o perfil de cada um, desenhado com a ponta das unhas...

Ah, estou tornando públicas as lindíssimas coisinhas particulares que coleciono. Melhor recolhê-las ao estojo de veludo que guardo em mim, nos 25 sentidos, no coração.

maria-julieta-drummond-de-andrade