Fonte: Maria Julieta Drummond de Andrade; (Coleção Melhores Crônicas). Seleção e prefácio de Marcos Pasche. Global, 2012, pp.227-230. Publicada, anteriormente, em Um buquê de alcachofras, José Olympio, 1980.

Há muitos anos, em minha terra, o Natal eram os presépios. Havia-os de todos os tipos, nas salas de visitas, nas igrejas, nas praças. O mais importante, sem dúvida, era o do Pipiripau, de que conservo uma lembrança vaga e feérica: funcionava num lugar ermo e reservado, e para chegar lá subíamos por muitos atalhos cheios de plantas silvestres. Ir ao Pipiripau: que alumbramento! Numa espécie de barracão, uma infinidade de figuras de madeira que participavam da natureza dos trens elétricos, dos bonecos de engonço ou simplesmente da coisa mágica – andavam de um lado para o outro e davam voltas, movidos por um mecanismo primitivo, que nos parecia maravilhoso. É uma recordação tão antiga, que às vezes não tenho certeza se o Pipiripau existiu de fato ou se o sonhei – mas como era belo!

Na igreja e nas praças, o presépio nunca deixou de ser convencional: as mesmas imagens coloridas, de rostos inexpressivos, colocados todos os anos no mesmo sítio. (Nem sequer variava o tamanho do Menino Jesus, sempre desproporcionado em relação ao das outras personagens.) Contudo tinha também o seu encanto, porque o poder de sonho, que estava em nós, dissimulava qualquer monotonia.

Já nas casas de família, o presépio era um desafio: inventá-lo, armá-lo, transformá-lo – que nunca repetisse o dos Natais anteriores. Tudo começava pelo menos uma semana antes, porque era preciso comprar papel crepom de vários tons, cartolina para pintá-la de marrom e de verde-escuro e espalhar-se purpurina em cima (só em certas partes e quando a tinta ainda estava úmida) – cortar estrelinhas e armar o cometa, fazendo-os de papel prateado, conseguir areia, grama, pedrinhas. Depois juntar espelhinhos de bolsa, patos e peixinhos de celulóide, remexer nos guardados da avó, atrás de broches, contas de colares, pedaços de enfeites que, incrustados no conjunto, pudessem cintilar. Só então as figurinhas de cerâmica – o Menino, Nossa Senhora, São José, o boi e o burro, os Reis Magos, o preto de tanga que conduzia o camelo, os pastores – eram cuidadosamente retirados da caixa onde jaziam há um ano, envoltos em algodão.

Vinha então o tio boêmio, que andava sempre viajando mas chegava pontualmente para essa data. Serrote, martelo, pregos, tesoura eram postos à sua disposição. Provido de todos os elementos, começava a criar. Silencioso e concentrado, ia preparando os alicerces com pedaços de tábuas extraídas de caixotes velhos. As crianças o acompanhavam com paciente admiração, honradíssimas se o tio se dignava a pedir-lhes alguma ajuda:

– Segura esta ponta. Estira um pouco mais ali. Me passa o balde de terra.

As ordens eram cumpridas com unção, e a nossa alma se ampliava de orgulho: as coisas que o tio sabia...

Finalmente, construído sobre a mesa retangular do lado direito da sala de jantar, o vilarejo ficava pronto, com montanhas, desertos, rios e lagoas, feitas com baciinhas de barbear fora de uso, cheias de água de verdade. Não havia, não podia haver nada mais lindo. O arquiteto contemplava a obra, ajeitava daqui e dali, e concluía com ar displicente:

– Pronto, agora só falta iluminar a gruta.

E começava a puxar fios até conseguir instalar uma pequena lâmpada azul, que só seria acesa depois da Missa de Galo, quando o Recém-Nascido era solenemente colocado na manjedoura por um dos sobrinhos, enquanto as vozes do órgão e das Filhas de Maria ainda ressoavam nos corações infantis. Como no bairro não se usavam árvores de Natal, os sapatinhos ficavam juntos ao presépio até a manhã seguinte.

Começava então a consoada. Nas festas do interior, tão diferentes das cariocas, não havia rabanadas nem Christmas pudding; o centro da mesa, sobre a qual fora estendida a toalha de adamascado das grandes ocasiões, ostentava um bolo em forma de tronco, recoberto de chocolate, com folhas tingidas de anilina verde. Peru, nunca; leitão assado de véspera, de pele dourada e crocante, com os dentinhos crispados num sorriso aflitivo, que tirava a fome das crianças, lombo de porco (ninguém criticava a redundância), frango com farofa de miúdos e arroz. Nenhuma salada. Na copa, um barril de chope espumejava. Como sobremesa, a imensa gelatina cor de opala e arroz-doce, receita especialíssima que passara de avó a avó, amarelo, com muitas gemas e mil arabescos de canela. Tudo isso está tão longe, e até hoje não se perdeu aquele sabor irreproduzível, em que se entrelaçavam a consistência perfeita do grão de arroz, nem duro nem tenro, e a suavidade envolvente do creme.

No meio da festa, as crianças adormeciam. Acordavam cedinho no dia 25, enquanto os adultos desfrutavam a ressaca cristã: as pequenas se atiravam aos presentes, as mais velhinhas se perdiam na contemplação do presépio que, à luz da manhã, apresentava uma beleza diferente, menos fantástica e mais nítida. O Menino estava sadio, como se tivesse crescido naquelas poucas horas, Nossa Senhora e São José sorriam e até o boi e o burro vigilavam com maior serenidade. Só os Reis Magos permaneciam imperturbáveis, no cume da montanha mais afastada. Urgia mudar-lhes a posição fazendo-os avançar alguns centímetros, senão jamais chegariam ao destino na data prevista. A partir daí, a cada momento o presépio era modificado por todos, de acordo com o humor e a fantasia de cada um. No Dia de Reis, pouco restava da fosforescente precisão inicial. Rodeada pelos netos, a avó procedia a desarmar a obra, num rito que não era melancólico: a missão de fervor e encantamento fora cumprida, e em dezembro recomeçaríamos. 

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