Às vezes acordo preocupada: antes de ler os jornais, já vou imaginando as notícias, sempre terríveis, cada vez mais, que me aguardam. E tenho vontade de regressar à campina dos sonhos absurdos, sem pé nem cabeça, engraçados ou ásperos, mas irreais, ou de jogar fora os matutinos, sem folheá-los, covardemente. Outras, a alegria de abrir os olhos e ver, como hoje, o sol ligeiro desse fim de agosto, brilhando sobre o pátio, o quarto, o azul do cobertor, sobre cada pequeno objeto que fui juntando pela vida afora e ajuda a moldar o meu quotidiano; o prazer de sentir na pele a doçura de um bom-dia luminoso – a harmonia de tudo isso me predispõe para enfrentar qualquer jornal, qualquer notícia, venha de onde vier, daqui, daí, dacolá, escura ou nigérrima.
E é como se essa boa vontade pessoal acabasse influindo de maneira positiva sobre os acontecimentos, pois descubro de repente coisas lindas, escondidas no meio da violência habitual da matéria gráfica. Leio, por exemplo, a história de quatro mexilhões, cuja salvação custou 20 mil dólares ao governo americano. Sim, senhores: cinco mil dólares cada um! Serão feitos de ouro puríssimo, de alguma substância marinha imarcescível, mais frágil que o nácar e o coral? Conterão pérolas ultrabarrocas, dignas de luziluzir no diadema das imperatrizes que-já-não-existem? Terão sabor tão sutil, que só poderiam figurar na mesa de um moderno Lúculo, disposto a satisfazer o agudo paladar de sua amada, para obter os favores que ela nega? Mexilhões de cinco mil dólares...
Pois verifico, assombrada, que se trata simplesmente de quatro moluscos bivalves, chamados Higgins Eye, e que respondem também pelo nome de Lampsilis Higgins, últimos representantes de uma espécie em vésperas de extinção. Vivia a pequena e rara comunidade sob a ponte que liga, há 48 anos, a ilha Arsenal à cidade de Moline, em Illinois. Como a construção precisasse ser demolida, um grupo de técnicos, sabedores do valor dos bichinhos, passou três semanas procurando-os. Localizaram-nos afinal e os transportaram, com infinito cuidado, às cercanias de outra ponte, entre Moline e Bettendorf, em Iowa, levando, para fazer-lhes companhia, um cardume de mil mexilhões mais comuns: que os quatro preciosos não se sentissem tão sozinhos.
– Mesmo assim: 20 mil dólares, quatro mexilhõezinhos... Certo perdeste o juízo, ó ignara! – hão de invectivar-me os quatro leitores que porventura me restarem se é que mais de um me seguiu até aqui. – E as crianças que ficariam bem alimentadas e vestidas com esse dinheiro e se salvariam do abandono – tudo o que poderia ser feito em prol da infânia triste ou da velhice miserável, em mil favelas e Biafras e até no próprio Illinois?
Dou-te razão, amigo/a. Apesar da ternura que sinto pelos animais em geral e, em particular, pelos companheiros que enfeitam o meu dia a dia, confesso que essa importância me deixou perplexa. Mas os ecologistas têm razões que a cronista desconhece, e o departamento americano, encarregado de cuidar das espécies em extinção, declarou ser a quantia pequena em relação aos benefícios obtidos. Os quatro moluscos são os únicos remanescentes vivos no mundo – e como calcular o valor de uma, de quatro vidas prestes a desaparecer? – conclui, emocionado, o biólogo Tom Freitag.
O primeiro mexilhão Higgins foi descoberto em 1977, e só no ano seguinte uma nova investigação localizou os outros três. Com os quatro, salvou-se também uma porção mínima e fundamental da natureza, do universo, da oculta sabedoria das coisas. O dinheiro foi bem empregado.
De qualquer maneira, os americanos não dormem em serviço e, assim como enfrentaram galhardamente a despesa, não vacilaram em impor uma pena de 20 anos de prisão e multa também de 20 mil dólares aos incautos que, por cobiça, curiosidade ou falta de sorte, pescarem um dos quatro animaizinhos milionários. Dinheiro que sai, dinheiro que entra – o importante são os mexilhões.
E para que não continuem a me julgar delirante, influenciada pela languidez destas manhãs frias, que para os entendidos já prenunciam a primavera, passo a outra notícia, publicada no jornal de hoje, só que referente a um fato ocorrido há exatamente cem anos: dois ovos foram vendidos em Edimburgo, em agosto de 1880, pela soma fantástica de cinco mil cento e setenta e cinco francos! Não tenho ideia de quanto isso representa atualmente, em dólares (e muito menos em pesos ou em cruzeiros), mas, a julgar pelo susto do jornalista do século XIX, calculo que deveria ultrapassar longe o que os mexilhões requereram. Os ovos não continham contrabando de drogas ou de brilhantes: eram apenas de um pingüim do Norte, membro solitário de uma família que se julgava desaparecida desde 1842.
Não, não é o solzinho matinal que me deixa de alma assim tão leve: é a comprovação de que nem tudo o que é bom está extinto na bizarra espécie humana, já que ainda há gente capaz de empregar tempo, fortuna e amor no trabalho de preservação de alguns bichinhos ignotos.