Publicada, posteriormente, no livro Hora do recreio, de 1967.
Manhã de janeiro, fresca, limpa, azul. Há melodias angélicas de Mozart na brisa. O rádio do vizinho continua em admirável silêncio.
O jornalista se levanta e vê que o mundo é infinitamente bom e funciona. O sangue, o coração, os pulmões, o fígado, tudo dentro dele funciona e canta e trabalha. Em torno, imponderável, harmonioso, correto, o Brasil trabalha e canta e funciona. Razões sutis e implacáveis, meu amor, tiveram no fundo o sábio Pangloss e o sapiente conde de Afonso Celso porque a vida é excelente, o Brasil é excelente, porque me ufano de ter nascido.
A doce governanta, loura, leve, serve ao jornalista café, pão integral e imaculado, manteiga saborosa, leite gordo, melão espanhol, presunto impecável, ovos recém-nascidos.
O jornalista fuma um cigarrinho que faz uma espiral azul até o teto. Lê os jornais: tudo em ordem, paz no mundo, redução drástica nos orçamentos militares, a Rússia, o Congo, a Argélia, os Estados Unidos, todas as nações amigas em grandes preparativos para o carnaval, e o dólar caindo tanto que a gente nem sabe aonde irá parar.
O jornalista senta-se diante da máquina elétrica, e vai num allegro indescritível pelas teclas, compondo o elogio do concerto universal, o panegírico da pátria, o elogio do progresso, da vida, do Homem. Pagam-lhe bem, extraordinariamente bem, para compor dia a dia esse poemeto de gratidão pelo mundo e pelo século 20.
Toca o telefone. Este ministro tem cada ideia! Imagine só, a essa altura, vir me perguntar se eu aceito uma viagem à Europa em comissão do governo! Tarefa suave, diz ele, como todas as tarefas do gênero. Mas eu é que não vou, apesar de estar disposto a quaisquer outros sacrifícios pelo bem e a grandeza do Brasil.
O jornalista se mete no seu calção estampado, alegre como um jardim em flor, e vai à praia, à praia mais linda do mundo, cheirando a mar, felicidade e poesia. Os brotos o envolvem como pombinhas matinais cercam a mão carinhosa que lhes traz o milho de todos os dias.
O jornalista volta para casa e toma a chuveirada farta e saudável. O telefone de novo. É a Norma. Mas será que essa mulherzinha não me deixa mais em paz. Está bem, está bem, na próxima semana, marcarei um encontro contigo.
E vem o almoço com um pequeno aborrecimento: a cozinheira está inconsolável, coitada, porque não encontrou patê francês na feira. Que importa, minha filha! Francês temos o vinho de suave gosto e fragrância. E nacionais temos as lagostas de Pernambuco, a gorda galinha fluminense, o lombinho de porco de Minas, as frutas de São Paulo, tudo fino, barato, delicioso.
O jornalista segue para cidade no seu carro americano. Assoviando, diga-se de passagem, o pedaço mais bonito de Jesus, alegria dos homens. Entra na redação, o gerente o saúda de braços abertos. Quer receber agora? Um adiantamento? Uma gratificação? Um aumento? Não, dinheiro demais não me traria mais felicidade.
Depois é flanar a tarde inteira pelas avenidas, gozar a fresca das árvores, cumprimentar as damas, parolar com os amigos, numa palavra, VIVER, viver como dizia com maiúsculas o bom Graça Aranha.
Para o jantar e boate, o jornalista já tem o seu programa: tem Esperança Gatto, que é esgalga como um lírio, inteligente como Descartes, espirituosa como Bernard Shaw, de lábios sumarentos como os vinhos bíblicos e linda como os amores.
E recolhido à alcova refrigerada, antes de apagar a luz, o jornalista faz uma reconsideração gravíssima: a vida não é boa, é magnífica, generosa, munificente, deslumbrante.