Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp.128-129. Publicada, originalmente, no jornal O Globo, de 28/08/1973.

É bom dormir cedo. Deitar com um cansaço maior que o pensamento e, sentindo uma espécie de sal dentro das pálpebras, descobrir que os ruídos se estão distanciando. O homem se felicita de não ser apenas uma efervescência de ideias, de ter ainda uma química humana que o rende, que o prostra. O homem intenso, que dorme sem sonhar. Acorda com a luz e os passarinhos da manhã. Vê o relógio. Dormiu quase oito horas, como todas as pessoas livres que prezam, acima de tudo, o direito de si mesmas. Olha ao longo do dia, que está começando. Um dia enorme, confortável. Não precisa correr. As horas são muitas. Pode escrever, nadar, receber, pagar, ir ao alfaiate, iniciar um tratamento de dentes. Tudo, menos sonhar. Os sonhos constroem com uma das piores matérias-primas do mundo – o nada. A perfeição do nada é fascinante. E só se deve construir com pedras e verdades. Uma casa ou uma felicidade precisa ser feita com as mãos. Jamais com palavras. A palavra substitui e relega o feito. Em vez de se contar uma história, devia-se estar fazendo constantemente alguma coisa com as mãos: uma estátua, um cigarro de palha, um carinho. A palavra sempre intrigou e desuniu. As mãos muito menos.

O homem olha as suas mãos sem feitos e procura recuperar-lhes a intimidade. Torná-las úteis e proveitosas.

O dia está lindo na avenida Atlântica. Em frente, a Ilha Rasa, desanuviada e nítida. A velha fortaleza, mais ou menos inútil como todas as fortalezas, onde uma corneta dá ordens várias vezes por dia. Uma mulher entra no mar, sem hesitação de medo ou de frio. E vai nadando, quase sem fazer espuma. Está fazendo alguma coisa. Não está pensando muito. As pessoas competentes estão muito acima das inspiradas. Vem-se da infância como de uma pátria. A maturidade é um exílio, no qual há que se proceder com dignidade. Meu corpo é meu e deve, cada vez mais, apossar-se da minha alma. Livrá-la de lacerações às vezes tão imerecidas. Não devo fazer poesia com minha alma. É preciso manter a intensidade das tendências. Comer, por exemplo. Comer com manteiga, com arroz, molho e pão. Um homem afrontado, depois de uma comida gorda, é um homem mais próximo de suas purezas. E o dia se estende aos meus pés como uma passadeira enorme. Devo caminhar sobre o dia o mais possível e misturar-me às multidões que suam, que sobem e descem escadas, que fazem fita e esperam, que empurram, que enfrentam oponentes reais de carne e osso e cantam, mesmo sem razão. O dia está tão grande à minha frente que, para fazer tudo o que preciso, nem é preciso chegar ao seu fim.

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