Fonte: As boas coisas da vida, 11ª ed. , Record, 2012, pp. 89-94.

Não me lembro mais o que ela cantava, nem sei mesmo se cantava, sei apenas que ela se agitava junto à orquestra com as coxas incessantes e uma extraordinária graça. Foi no tempo dos Mutantes.

Depois descobri que tinha uma vozinha fina e delicada de moça brasileira de boa família do interior, e isso fazia contraste com todo o seu visual cheio de sotaque.

Rita Lee! Era careteira e moleque e cantava com os Tutti Frutti falando de Miss Brasil Dois Mil  “que trabalha em S. Paulo e tem férias no Rio”. Dizia que agora “é moda sair nua em capa de revista, e achar que tudo é uma pobreza”.

“Suspenderam os jardins da Babilônia, e eu, pra não ficar por baixo, resolvi bater as asas para fora. Não é de hoje que estou aqui tentando voltar pro lugar de onde nunca saí, eu já fui pedra, eu já fui planta, eu já fui bicho, eu sou uma pessoa dividida pelas vidas que vivi! Eu faço parte do povo”... lá ia essa Rita Lee dizendo coisas para cá e para lá com muita desenvoltura, fazendo uma espécie de crônica misturada com poesia, “cercada de ouro por todos os lixos, no meio do mato andando na rua, em cima das nuvens, ouvindo um disco, do lado oculto de todas as luas”.

E falava em fugir de casa, andar na beira do abismo... Foi mais ou menos a essa altura, ou pouco depois, que levou uma cana, foi metida por dez, 15 dias num imundo xadrez cheio de ladras e assassinas, sob uma acusação qualquer de maconha. A ditadura militar brasileira mostrava o seu lado mais torvo: fulminava aquela moça grávida com uma ferocidade ridícula. O que incomodava aqueles senhores adeptos de cadeias e torturas era o ar de liberdade, o desafio da graça e do espírito de Rita Lee.

Sabeis a sequência: a moça casou, teve um filho, teve outro e mais outro e começou a compor e cantar com seu homem. “Se por acaso morrer do coração é sinal que amei demais; mas enquanto estou viva, cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz!” E fez, cantando a saudável alegria do amor carnal, reinventando essa coisa antiga mas ainda empolgante que é o amor de homem e mulher, com seus sexos opostos – "nós dois numa banheira de espuma, el cuerpo caliente um dolce farniente, sem culpa nenhuma”. Ainda dizia que “toda lenda é pura verdade, o mundo é dos que sonham”, mas confessava: “Me cansei de como ter um mundo melhor, vou é cuidar mais de mim” e então “desmaio nos seus braços, me aqueço em seus mormaços, antes durante depois estou perdidamente apaixonada por nós dois”.

Mas isso é apenas o começo: ei-la pedindo lança-perfume, dizendo: “me faz de gato e sapato, me deixa de quatro no ato”. Em Bem me quer, ela é “maria-sem-vergonha do seu jardim”, e em Baila comigo quer ser índio “num eterno domingo, se Deus quiser um dia eu acabo voando”.

Conheceis o resto: “você me deixa cabreira, sem eira nem beira... eu me desmancho toda, o resto que se exploda...”

A coisa mais bonita que já se escreveu sobre ela foi esta de Nirlando Beirão: “estrela solitária do desbum, estandarte do prazer, deusa de todos os verões, até os da alma...”

No verão 82-83 eu a vi na Urca e depois num ensaio no D. Bosco, em Vitória, e ela estava magra demais. Acho que nem os 50 quilos que foram seu peso muito tempo, e isso para uma pessoa de 1,70 de altura. Na entrevista que deu à Globo em Salvador, aparece encaveirada, isso me dá aflição, sinto bater dentro de mim o coração italiano de dona Balbina, sua mãe – e é como se ela carregasse nas magras costas 60 toneladas de equipamento e 10.000 watts de som, e a banda, e os projetores e canhões de luz, passarela de 30 metros com elevador de onde ela emergirá – primeiro a mão com um comprido indicador apontando as gambiarras... perdão, acaso eu disse gambiarras? então está dito: gambiarras; ponhamos Rita Gambiarras Lee, coração de magra leoa faminta de luzes.

É doce escrever bobagens assim, ela inspira isso. Depois de se dizer bonita e gostosa no tempo da Babilônia, declarou a Geraldo Mairynk que não era nem uma coisa nem outra. Não é mesmo bonita, jamais poderia ser chamada de bela – mas com que frequência é linda! E bem desenhadíssima, os membros longos e altamente autoproduzida, ela acerta da maneira mais fina nas roupas mais extravagantes, parece ter uma tendência para a cor cenoura, como se moveria bem no Moulin Rouge ao lado de Jane Avril e Valentin-le-Désossé, desenhada a esfregaços de bastonetes de pastel por Degas ou Toulouse- Lautrec! De ambos tem o humor entre o prosaico e o maravilhoso, sob a sagrada luz das gambiarras!

Mas sua lição principal há de ser de alegria – as pessoas me dizem que gostam de ver e ouvir Rita porque ela diverte, faz rir. Eu entendo isso, estou há muito tempo enjoado de um certo ar solene e fatal de certas cantoras brasileiras que parecem se achar supremas e sensuais e são, além de viciosas, de uma vulgaridade mortificante – aquele truque que uma delas tem de sempre mostrar a coxa, que pobreza! Mas não é preciso falar mal de ninguém para falar bem de Rita Lee, o que é simpático nela é ser tão caçoísta, como se dizia antigamente; até de si mesma caçoa.

Vou entrevistá-la e redijo perguntas ao acaso:

“Se estudou balé. Quem faz a coreografia de seu show, a marcação de seus movimentos em cena? Ensaia gestos e caretas ao espelho? Quando menina teve a consciência de poder ser engraçada?”

A declarante disse nunca ter estudado balé. Ela mesma inventa o que faz. O santo baixa, Isadora Duncan baixa, a cigana baixa, e eu danço conforme a música. Adoro ter um espelho em minha frente para experimentar caras, bocas e caretas. Sempre fui a palhaça da classe, nunca a cê-dê-efe.

A perguntas subsequentes, de caráter racial, disse que do lado paterno tem 50 por cento de sangue índio (cherokees) e 50 por cento escocês (Stewart). Que sim, os ossos de sua cara são do avô índio. Sim, tem muitas sardas e não as combate, muito pelo contrário; que seus cabelos são da cor natural – castanho-avermelhado. Que não, não faz regime para emagrecer e gosta de ser magra assim:

– Para voar mais alto.

RB. – Tem consciência de que ajuda toda uma geração de brasileiras a se libertar do peso de uma porção de preconceitos e bobagens?

RL. – Nunca parei e sentei para refletir sobre isso, mas sei disso. Sou muito mais consciente de minha relação com as crianças, que é uma transa de aquariana ligada mais ao futuro. 

(Rita, que fez 35 anos no último 31 de dezembro, nasceu sob o signo de Capricórnio, com ascendente Aquário. Eu também sou Capricórnio, mas nasci com certa precipitação e acabo de fazer 70.)

Rita tem três filhos, o menor de um ano e meio. Tenho amigas que gostam muito de Rita Lee, mas não comprariam seus discos se não fossem obrigadas pelas crianças, que ouvem e cantam sem parar seu último hit.

E como estamos em Vitória do Espírito Santo eu lhe pergunto por que não faz um agrado a nós, capixabas, indo ao Convento da Penha ou elogiando a moqueca local?

Responde que é porque o convento é muito longe, não deu tempo de ir, mas irá quando vier aqui a passeio. Quanto à moqueca, responde, por escrito, é D-E-M-A-I-S!

O que não lhe perguntei foi se seus olhos eram azuis ou verdes, ou tremendamente violeta. Sejamos discretos. O que não falei foi de sua voz e de sua maneira de cantar, pois não entendo dessas coisas, mas não se esqueçam de que João Gilberto lhe deu aval. Eu por mim apenas sei da extrema simpatia de sua voz, que faz tantas doces curvas no ar, e se entrega a encantadores vocalises – são vocalises? que são vocalises? não seria melhor dizer vocais, ou modulações?

Oh, Rita Lee, você faz o nosso Brasil menos pesado, menos burro, você (entretanto às vezes melancólica) também é uma alegria do povo, obsessão das crianças, encanto de nós todos homens, a Pátria lhe será grata, ossa mea non possidebis, Tertuliana, frívola peralta.

Adeus, ruiva andorinha.

(1983)

rubem-braga