maio, 1918

A superstição do doutor 

 

Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, p.344. Publicada, originalmente, na [Gazeta de Notícias, 25-03-1917] e, posteriormente, no livro Bagatelas, 1956, p.19.

Joaquim Veríssimo de Cerqueira Lima, amanuense dos Correios da Bahia, pedindo fazer constar em seus assentamentos o título de doutor em ciências médico-cirúrgicas. – Deferido.

 (Gazeta de Notícias, de 25 de março de 1917.)

 

Tratando o senhor Veiga Miranda, na edição de São Paulo do Jornal do Comércio, de um dos meus humildes livros, disse que eu tinha birra do “doutor”.

Quis, ao ler o artigo do meu amável crítico, explicar detidamente por que, de fato, tinha eu essa birra; mas lembrei-me que jurara a mim mesmo aceitar em silêncio todas as críticas que me fizessem, e nada respondi, tanto mais que qualquer resposta poderia magoar a quem tivera a bondade e a lealdade de ocupar-se com a minha obrinha. Contudo, escrevi-lhe uma carta, em que julgo ter manifestado plenamente a minha satisfação, sem deixar transparecer qualquer azedume que verdadeiramente não tinha, explicando brevemente a minha opinião sobre o assunto.

Citei aqui o senhor Veiga Miranda não só porque pretendo desenvolver algumas razões da minha birra com o “doutor”, encontrada por ele nos meus escritos, como também lhe dar parabéns por ter sido reconhecido deputado.

Sinto que o seja para representar a calamitosa oligarquia paulista, a mais odiosa do Brasil, a mais feroz, pois não trepida em esmagar as suas barulhentas dissidências, a macete, a pilão ou pilões, como se castram ou se castravam touros valentes para serem depois mui mansos bois de carro.

Não me cabendo nem querendo meter-me em bobagens políticas, cumpri o meu dever de civilidade, dando-lhe os parabéns e devo continuar o artigo, atacando o tema de que ele é objeto.

Em outro qualquer país, talvez, não fosse um temperamento liberal chocado com a espécie zoológica e social – “doutor”; mas, no Brasil, com a importância descomunal, o ar de sagrado que os costumes lhe emprestam, e os privilégios que a lei lhe outorga, não é possível deixar de revoltar-se contra ela todo aquele que não quer ver renascer nos tempos atuais uma nobreza, principalmente uma nobreza que indica para as suas bases justamente aquilo que ela não possui – o saber.

Essa birra do “doutor” não é só minha, mas poucos têm a coragem de manifestá-la. Ninguém se anima a dizer que eles não têm direito a tais prerrogativas e isenções, porque a maioria deles é de ignorantes. E que só os sábios, os estudiosos, doutores ou não, é que merecem as atenções que vão em geral para os cretinos cheios de anéis e empáfia.

Todas as variedades do “doutor” acreditam que os seus privilégios, honras, garantias e isenções, como se diz nas patentes militares, se originam do saber, da ciência de que são portadores; entretanto, entre cem, só dez ou 20 sabem razoavelmente alguma cousa. São quase sempre, além de medíocres intelectualmente, ignorantes como um bororó de tudo o que fingiram estudar. Aquilo que os antigos chamavam humanidades, em geral, eles ignoram completamente. Não são falhas, que todos têm na sua instrução; são abismos hiantes que a deles apresenta.

A maioria dos candidatos ao “doutorado” é de meninos ricos ou parecidos, sem nenhum amor ao estudo, sem nenhuma vocação nem ambição intelectual. O que eles veem no curso não é o estudo sério das matérias, não sentem a atração misteriosa do saber, não se comprazem com a explicação que a ciência oferece da natureza; o que eles veem é o título que lhes dá namoradas, consideração social, direito a altas posições e os diferencia do filho de “seu” Costa, contínuo de escritório do poderoso papai.

Animados por esse espírito, vão, com excelentes aprovações, às vezes, obtendo os exames preliminares e, afinal, matriculam-se na academia, como dizem eles no seu jargão pretensioso – podendo ela ser civil ou militar.

Na escola ou faculdade, as cousas se passam muito mais facilmente. Não há filho de sujeito mais ou menos notável que não vá adiante no curso, sem a menor dificuldade. É mais fácil que obter os preparatórios.

Na Escola Politécnica, é de praxe, de regra até, que todo o filho, sobrinho ou parente de capitalistas ou de brasseurs d’affaires, mais ou menos iniciado na cabala crematística do Club de Engenharia, seja aprovado. É bem de ver por quê. Os lentes das nossas escolas, com raras exceções, não se contentam com os seus vencimentos oficiais. Todos eles são mundanos, querem fazer parada de luxo, teatros, bailes, com as suas mulheres e filhas. A situação oficial que têm dá-lhes prestígio, fazem-nos boas “figuras de proa” e os seus nomes são procurados para apadrinhar as companhias, as empresas, mais ou menos honestas, que os especuladores de todos os matizes e nacionalidade organizam por aí.

Não é possível que um lente de química orgânica, por exemplo, que, devido às relações que tem com o capitalista Joab Manassés, foi feito, com grandes honorários, presidente da companhia de docas de um porto de Mar de Espanha, consiga do seu coração a violência de reprovar-lhe o filho. O Efraim, o filho de Joab Manassés, vai assim correndo os anos; e, se encontra um lente honesto, procura uma escola outra para fazer o exame que não lhe querem dar.

O que se diz do filho de Joab pode-se dizer de milhares de outros em toda espécie de faculdades; e todos eles, ignorantes e arrotando um saber que não têm, vêm para a vida, mesmo fora das profissões a cujo exercício lhes dá direito o título, criar obstáculos aos honestos de inteligência, aos modestos que estudaram, dando esse espetáculo ignóbil de diretores de bancos oficiais, de chefes de repartições, de embaixadores, de deputados, de senadores, de generais, de almirantes, de delegados, que têm menos instrução do que um humilde contínuo; e, apesar de tudo, quase todos mais enriquecem, seja pelo casamento ou outro qualquer expediente, mais ou menos confessável. Toda a gente conhece a nossa peculiar instituição do “muleta”. Chama-se isto ao auxiliar ilustrado e entendido que todo nosso figurão possui, e leva como secretário ou cousa semelhante para todas as comissões em que vai empregar a sua reconhecida capacidade, como dizem os jornais. O engenheiro F é “muleta” do doutor H; o capitão X, do general F; o capitão-de-corveta Y, do almirante D; e assim por diante, com os médicos, advogados, etc. Eles, os doutores, são nobreza, como se a fidalguia de sangue, feudal e militar, fosse composta de filhos naturais, não possuísse castelos ou manoirs e formada fosse de poltrões! Fresca nobreza!

Do Império, nós herdamos um respeito hindu pelo “doutor” e o aumentamos, como tudo o que ele tinha de mau. Parece que era o seu pensamento organizar um tchin, à russa, com o título, o pergaminho, como diz-se por aí; e foi feliz porque conseguiu implantar no espírito do povo uma veneração bramânica pelos seus bacharéis, médicos e engenheiros.

O subalterno, o enfermeiro, por exemplo, não chama o médico, nem mesmo o interno estudante, por senhor. Chama-o – Vossa Senhoria. Se, minutos depois, chegar o administrador do hospital, ele o tratará por senhor. Os soldados russos tratam ou tratavam os oficiais por – “Vossa Nobreza”. Nas estradas de ferro, dá-se o mesmo que nos hospitais; e, com os juízes há de se passar a mesma cousa, por parte dos meirinhos e escreventes.

O povo do Brasil que, raramente, se deixa infiltrar por ideias úteis e que lhe são favoráveis, neste ponto, foi de uma porosidade de espantar, tão dócil foi ela!

Para a massa total dos brasileiros, o doutor é mais inteligente do que outro qualquer, e só ele é inteligente; é mais sábio, embora esteja disposto a reconhecer que ele é, às vezes, analfabeto; é mais honesto, apesar de tudo; é mais bonito, conquanto seja um Quasímodo; é branco, sendo mesmo da cor da noite; é muito honesto, mesmo que se conheçam muitas velhacadas dele; é mais digno; é mais leal e está, de algum modo, em comunicação com a divindade.

É essa abusão de feitiçaria, essa grosseira religiosidade de candomblé ou de macumba, pelo nosso título universitário, que leva os jornalistas panurgianos a pedir a supressão do júri, porque, em certas ocasiões, absolve certos réus que lhes parece deviam ser condenados.

Esses senhores de tão grande coragem moral no anonimato das folhas diárias não têm absolutamente a decisão de sentar-se no júri e julgar segundo a sua própria consciência. Esquivam-se de todo o jeito; e, fáceis em condenar os jurados porque não são, em geral, doutores, eles se esquecem de examinar os julgados dos juízes de beca, desde o pretor até o desembargador e o ministro do Supremo, onde poderiam encontrar muita cousa que os faria diminuir o seu assombro diante das absolvições do júri.

Cá e lá, más fadas há...

Esse estado de espírito geral no nosso país, essa superstição, essa estúpida crendice dos ilustrados e dos analfabetos, dos néscios e dos atilados, levou ultimamente os nossos legisladores, num farisaico zelo pela verdade eleitoral, a entregar o alistamento dos cidadãos votantes e também as mesas eleitorais aos juízes, isto é, a doutores e bacharéis.

E todos nós vimos como a cousa saiu. Houve fraudes ou duplicatas no Ceará, no Espírito Santo, em Alagoas, na Bahia, no estado do Rio, no Pará, no Rio Grande do Sul, em Sergipe; e o Rio de Janeiro continuou a mandar como seus representantes alguns respeitáveis desconhecidos apelintrados, que não sabem nem a data da fundação da cidade.

O senhor Érico Coelho, na sua contestação ao senhor M. Leal, diz textualmente:

 

Fiou o Congresso Nacional nos juízes estaduais a organização de alistamento e a vigilância de comícios populares. O recente pleito, no infeliz Estado do Rio, veio a ser o ludíbrio das nossas aspirações legislativas.

 

O Correio da Manhã, em sua edição de 4 do corrente, conta este eloquente caso, depois de registrar o entusiasmo que lhe despertou a nova lei eleitoral:

 

Mas há casos que esfriam os mais fortes entusiasmos.

Anteontem, na reunião da Comissão de Poderes do Senado, enquanto se discutia o pleito do Espírito Santo, fazendo-se terríveis acusações à magistratura local, quantos lá estavam testemunharam um fato desconcertante. Achava-se na sala, e foi apontado pelo procurador do político que contestou a referida eleição, o juiz de direito da comarca de Alegre. Este homem, quando delegado de polícia de Vitória, sofrera um grande insulto, por ocasião de um discurso em que endeusava os Monteiros. Foi, por isto, nomeado para aquele cargo. Indo o senhor Jerônimo Monteiro defender no Senado os seus interesses, o juiz acompanhava-o todos os dias, carregando-lhe a pasta dos papéis, e serviu de seu auxiliar no exame dos livros e documentos relativos ao pleito, desde a primeira hora. Ao ouvir a contracontestação do seu protetor, tinha gestos de efusiva ternura, como de indignação ao ouvir o discurso do senhor Muniz Freire. E ele dirigiu entre essas paixões o alistamento e a eleição em Alegre.

 

A Gazeta de Notícias, de 8 também do corrente, referindo-se às eleições de Sergipe, assim diz:

 

A Câmara deve hoje reconhecer os deputados eleitos por Sergipe.

Entre os diplomados pela junta apuradora de Aracaju, está o famigerado major Manuel de Carvalho Nobre, primo-irmão e cunhado do doutor Nobre de Lacerda, juiz seccional do estado, presidente da mesma junta.

Contestando o diploma, produto de um arranjo imoralíssimo de família, feito sob o patrocínio do incorrigível politiqueiro general Valadão...

Poderia aduzir mais exemplares com os quais mostrasse como os sobre-humanos doutores incorruptíveis procederam; mas não é preciso. É fácil de adivinhar.

Sentindo que a crendice geral dava esse prestígio quase divino ao “doutor”, todos os pais, desde que pudessem um bocadinho, começaram a encaminhar os filhos para as escolas ditas superiores. É preciso, no Brasil, ter uma carta nem que seja de embrulhar manteiga; é um aforisma doméstico, conhecido e repetido, nos serões do lar, do norte ao sul do país.

Os doutores, então, cresceram em número e o exercício da profissão para que estavam oficialmente habilitados não dando margem, devido à pletora deles, para o ganho remunerador de cada um, encaminharam-se eles para os empregos públicos, que nenhuma capacidade especial exigem.

O Tesouro, o Tribunal de Contas, as secretarias ministeriais e outras repartições menos importantes ficaram cheias de amanuenses, escriturários, oficiais, engenheiros, médicos, advogados, dentistas, farmacêuticos; e todos estes, no íntimo ou claramente, se julgam com mais direito às recompensas burocráticas e às promoções que os seus colegas, que não têm título algum.

A prova está na notícia que epigrafa estas linhas. Aquele amanuense dos Correios pediu ao diretor geral que fizesse constar na sua fé de ofícios que era doutor, para, quando se tratasse de alegar merecimento, pudesse apresentar o “canudo” como maior de espadas. E a administração – o que é estranho – levará, porque tem levado muitas vezes, em consideração semelhante alegação, esquecendo que só se podem comparar quantidades homogêneas. Merecimento é a comparação dos serviços, das aptidões para eles, entre dous ou mais funcionários. Serão os serviços e aptidões do amanuense da mesma natureza que as aptidões e serviços que pode revelar ou possuir um médico?

Um médico só pode ter merecimento sobre outro médico; e um amanuense sobre outro amanuense.

Quando é médico, o tal amanuense só pode ser comparado a outro médico; e quando amanuense ele só pode entrar em relação com outro amanuense no que a profissão deste tem de peculiar a ele, eliminando-se da comparação a duvidosa medicina do burocrata. Isto é que é lógico, penso eu; senão teríamos que comparar os méritos de um flautista com os de um marceneiro, para dizer qual dos dois é o melhor nas suas profissões. Concebe-se?

Mas a superstição do “doutor” é tal que faz o governo, em casos destes, não raciocinar claramente e proceder contra as mais comezinhas regras do bom senso.

É contra tais disparates que me insurjo e procuro, por todos os meios, mostrar a imbecilidade desse respeito cabalístico, esotérico pelo “doutor”, respeito e veneração que estão criando entre nós uma nobreza das mais atrozes que se pode imaginar.

Se a humanidade cortou cabeças de reis, de rainhas, de duques, de marquesas (Ah! Que pena eu não lhes ter visto os lindos, os alvos, os roliços pescoços, entrarem na janela da guilhotina!), de viscondes, etc., para acabar com a nobreza feudal, como é que nós estamos criando uma de pés de barro e que, amanhã, pode entorpecer a vida de nossos filhos? É preciso combater a superstição enquanto é tempo. Mostrarei mais.

A polícia daqui, em um seu regulamento, expedido quando chefe o senhor Alfredo Pinto, marcou para os “doutores” criminosos prisão especial; o senhor Nilo Peçanha, em dias próximos, dispensou de concurso para os lugares de cônsules os bacharéis em direito. Por quê? Por que também os delegados são obrigatoriamente bacharéis?

Na Contabilidade da Guerra, há poucos anos, os encarregados de fazer-lhe um novo regulamento exigiram um concurso descomunal para o provimento do primeiro lugar da respectiva hierarquia; mas dispensaram dele os formados pelas faculdades da República. As matérias exigidas para o concurso eram quase o dobro das que se exigem para matrícula no curso de farmácia e odontologia, que dão, como os demais cursos, “formados” pelas faculdades da República.

Sob o pretexto de saneamento do interior, um jovem sábio, o senhor Belisário Pena, anda fazendo propaganda da criação de um Ministério da Saúde Pública. Este moço é um caso típico da presunção doutoral. Ele, ou não leu a Constituição ou se a leu julga que um medalhão médico, aí qualquer, pode sobrepor-se a ela. Um ministério tão estreitamente profissional há de querer um ministro médico; e como conciliar essa restrição com a nossa lei fundamental, que autoriza o presidente a nomear “livremente” os seus ministros? A superstição do “doutor”, por parte do povo, e a presunção deles como consequência, obliteram certos espíritos até fazê-los chegar a essa cegueira completa. A Academia de Letras, onde era de esperar houvesse mais independência espiritual, só elegeu o senhor Oswaldo Cruz, o senhor Miguel Couto e o senhor Aluísio de Castro, todos muito estreitamente médicos, ou cousa aparentada com a medicina, entre outros motivos, e que nada tinham com as letras, porque eram doutores. Não há a argumentar com a Academia Francesa. Dela, nos bons tempos da nobreza, já foram seus membros marqueses de 15 anos, que deviam ainda estar nas declinações latinas. As tradições fidalgas e áulicas da Academia Francesa permitiram essas cousas e outras antecedentes, algumas tanto ou mais estrambóticas. A nossa não tem essa herança secular; e não é suficiente que um “doutor” pastiche os quinhentistas e seiscentistas para ser homem de letras e acadêmico delas. Mais direito tem um mau poeta. Cada macaco no seu galho.

Todo esse rol de manifestações da superstição do “doutor” podia ser infinitamente aumentado, pois há muito que, a tal respeito, respigar, nas leis e regulamentos. Poderíamos mostrar que o título universitário, que só pode e deve dar direito ao exercício de uma certa profissão, está se transformando em um foral de nobreza, emprestando ao sujeito que é dele portador capacidades superiores aos outros e habilidades que ele não tem ou todos podem ter. As cartas de nossas faculdades estão ficando como os pergaminhos da antiga aristocracia que, nos tempos passados, permitiram os seus possuidores, sem a mínima noção de coisas navais, serem investidos de comandos de navios e esquadras, como se dava na Espanha, em Portugal e até na Inglaterra, como conta Macaulay.

Os pilotos, cujos nomes foram em geral esquecidos, os humildes pilotos era que governavam os navios; mas a glória militar ou a pacífica das descobertas cabia aos Dons Qualquer Cousa ou a um baronet felizardo.

As “carteiras” do Banco do Brasil têm sido testemunhas de cousas análogas e outros departamentos da administração também.

É um erro prestigiar todo entrave que se opõe ao livre jogo das forças sociais. É da autonomia de cada uma delas e do seu desenvolvimento total que podemos obter não só o seu melhor aproveitamento para benefício comum, como seu equilíbrio perfeito e eficaz.

O que o governo e os costumes do Brasil estão fazendo, com essa superstição do “doutor”, é cercear iniciativas, é condenar inteligências inovadoras, se não à obscuridade completa, ao desânimo e ao relaxamento.

Só os ricos podem formar-se e nós já sabemos como, em geral, eles se formam. Os pobres que procuram lugares subalternos logo na adolescência e são diligentes e capazes, adquirem, por isso mesmo, nas suas especialidades um tirocínio maior e uma prática mais estimável para os ofícios do que o duvidoso saber da maioria dos medíocres que saem das nossas escolas. A lei e os regulamentos não deviam impedir que aqueles fossem recompensados, conforme o mérito revelado, com lugares de certa importância no fim da vida.

Na Estrada de Ferro Central, era assim até bem pouco tempo. Os subinspetores do movimento e dos telégrafos eram escolhidos entre os antigos telegrafistas e chefes de trem; mas veio a república e a avidez dos doutores do Largo de São Francisco tomou os lugares para eles. Há repúblicas aristocráticas.

A aliança do “doutor” com a burguesia, que se faz em geral pelo casamento, dá ao “formado” toda a força que, nos nossos tempos, o dinheiro tem, e a sua simulação intelectual e de saber, acabando em superstição na massa, dá por sua vez o prestígio que a inteligência sempre teve, tem e terá, sem lhe ditar mais amor ao estudo, mais honestidade mental, mais abnegação profissional e critério no cumprimento do dever. São maus pastores... Em geral, ele perde a pouca curiosidade intelectual que tinha na escola, esquece as poucas noções que recebeu, atém-se a fórmulas, a gastas receitas e fica um fátuo silencioso e solene, defendendo a sua inópia cerebral, a sua ignorância com a superstição pelo título que todos têm, principalmente as moças, de todas as condições, mas, em muitas das quais, sabe Deus! com que amargura, ela se vem desfazer, quando conhecem intimamente o “doutor” que é marido delas. Estas é que são as mais francas quando falam deles, pois o manipanso se lhes mostra completamente o que era: um toco de pau bem duro.

Essa abusão doutoral, além de impedir a inovação, pondo todas as inteligências num mesmo molde, instilando nelas preconceitos intelectuais obsoletos; além de tudo isso, com o nosso ensino superior feito em pontos manuscritos ou impressos, em cadernos e outros bagaços, muito espremidos, das disciplinas do curso, sem professores atentos ao progresso do saber professado por eles e por eles encerrado no dia em que recebem o decreto de nomeação – causa toda a nossa estagnação intelectual, desalenta os mais animosos, não dá vontade às inteligências livres para o esforço mental e vamos assim ficando como os chineses, parados intelectualmente, mas sempre cheios de admiração pelos grotescos exames de Cantão.

O senhor Tobias Monteiro, em uma interessante brochura – Funcionários e doutores, aconselhou nossa mocidade a procurar outros caminhos, entre os quais apontou o da lavoura. O ilustre publicista, como em geral todos os nossos publicistas, jornalistas, romancistas, etc., não quis descer a detalhes de dinheiro. Nos nossos dias, são os mais importantes. Qual a mocidade que o senhor Tobias Monteiro quer que se dedique à lavoura? A rica?

Esta não é tola de abandonar o trilho batido que lhe dá todos os privilégios, lhe disfarça a miséria mental e lhe abre todas as portas, para se meter no mato e exercer uma profissão que, para ser remuneradora, exige trabalho, atividade, prática, se não saber.

Pois se um vulgar bacharelete, mais ou menos rico de si, porém muito mais rico por ser casado com a filha de um judeu milionário, pode, apesar de completamente desconhecido, fazer-se deputado comprando votos a trinta mil-réis a cabeça e com vales de jantar, por que havia ele de deixar de ser bacharel para estar à testa de uma plantação de arroz, em lugar ermo, sem Lírico, Municipal e sósias de celebridades europeias do palco e outros lugares, sósias destinadas unicamente à América do Sul? Era engraçado...

Seria à mocidade pobre que o senhor Tobias Monteiro queria se referir? Pense bem o ilustre jornalista: um moço pobre, verdadeiramente pobre, consegue uma carta de agrônomo, onde ele irá arranjar dinheiro para comprar terras em que exerça a sua agronomia? Em parte alguma. Tem que procurar emprego, não é? O particular, o fazendeiro não lhe dá, porque não acredita nessa nova espécie de “doutor”. Onde, então? O remédio é cavar com o Pereira Lima um emprego...

De resto, os pobres devem, seja como for, empregando mesmo os mais desesperados recursos, concorrer com os ricos burgueses no doutorado. Seria uma calamidade que esses “anelados” ficassem só constando de gente como o senhor Aluísio de Castro, uma auspiciosa reencarnação do mestre Garcia de Orta, físico d’El-Rei, ou como o senhor Hélio Lobo, vulgo “secretário da presidência” ou “papa-ajudas de custo”. É preciso que os pobres façam-se doutores para contrabalançar a influência nefasta dos burguesetes felizes e precocemente guindados a alturas em que se não dispensa a idade, mesmo quando se trata de gênios; mas que eles conseguem com disfarces, peloticas e mais habilidades de feira.

Para terminar, observo ainda que é tal a fascinação pelo título, a superstição que se tem por ele, que uma revista desta cidade – Kodak, de 3 de agosto do ano passado, – chegou ao desplante de pôr embaixo do retrato de uma senhora a seguinte e expressiva legenda – Mme Dr. V. R. Já se viu coisa igual?

Além desse fato curioso e denunciador do nosso estado de espírito em relação ao “doutor”, temos ainda que o senhor Pereira Lima, doutor não sei em quê, é presidente da Associação Comercial; e os mercadores do Rio de Janeiro elegeram como seu representante na Câmara dos Deputados o doutor Sampaio Correia, que, aliás, é um homem de verdadeiro talento.

Depois disto tudo, quererá ainda o senhor Tobias Monteiro mandar os moços pobres para a lavoura e para o comércio? O remédio é outro, senhor Tobias; e só se poderá aplicá-lo quando a ocasião propícia surgir. Não tardará muito.

Expus, talvez, mal, os motivos da minha birra; mas não me despeço sem prometer que hei de continuar a campanha enquanto tiver um pingo de vida. 

lima-barreto