Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 12/01/1966.

Entre as colinas do norte da França, a caminho da Inglaterra, verifico a exatidão de uma imagem de Rubem Braga que outrora me parecia retórica: são realmente “doces montes cúbicos de feno” que desfilam em ambos os lados da estrada. Dos solos revolvidos se desprende um cheiro poderoso de beterrabas.

Agora atravessamos os campos que a neblina adormece e pensamos com admiração naqueles primeiros homens e naquelas primeiras mulheres que aqui acamparam e que aqui, ao longo dos séculos, construíram uma raça temperada pelos mais rigorosos invernos.

Quantos perigos, quanta solidão, quanta fraqueza humana e força moral, quantas e quantas e quantas carroças rangeram sob montanhas de terra e beterraba! Depois, pouco a pouco, cada pedaço da terra, cada paisagem, cada horizonte se deixou moldar à feição do homem. Assim o bicho mais fraco fez tremer os mais ferozes e dominou as cavalgaduras. Assim, no inverno, ele acendeu as fogueiras e bebeu o vinho a que submetera a uva e comeu o pão a que submetera o trigo. Contra o grande mundo hostil se erguia a dura determinação de uma tribo coesa. Havia uma só família, a divisão do trabalho era a mais justa, e a felicidade se lia num rosto de pedra. Trabalhar, comer, beber, dormir, sobreviver: a felicidade se lia num rosto rude como a pata de um búfalo. Depois as tribos se diferenciaram, e cada nação estabeleceu as suas fronteiras. Era agora a dura determinação de um homem contra a dura determinação de outro homem. Os escravos, os senhores... Depois de subjugar o mastodonte, o búfalo, o tigre, o cavalo, ele investia sobre o seu irmão para subjugá-lo. E pouco a pouco foi transferindo para os símbolos a sua cobiça, o seu ódio e o seu amor. A bandeira, o cetro, a coroa, o brasão, toda espécie de distintivo. Primeiro nós éramos nós todos; depois nós éramos nós e eles eram eles (nossos inimigos); e finalmente nós éramos eu e eu e eu e eu.

Contudo avançamos entre os doces montes cúbicos de feno, enquanto agoniza o ano de 1965. Da terra revolta se desprende o poderoso cheiro da beterraba.

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