Três vezes escrevi o nome do dr. Abel Parente, três vezes o risquei, tal é a minha aversão às questões pessoais; mas, refletindo que não podia contar a minha grande desilusão sem nomear o autor dela, acabo escrevendo o nome deste distinto ginecologista.
Ninguém esqueceu ainda a famosa discussão que aqui há anos se travou, relativamente à esterilização da mulher pelo sistema do dr. Abel Parente. Ilustres profissionais atacaram e defenderam o nosso hóspede, com tal brilho, calor e evidência, que era difícil adotar uma opinião, sem ficar olhando para a outra com saudade, como aquele irresoluto da comédia, que acaba escolhendo uma das duas moças a quem namora, mas suspira consigo: “Creio que teria feito melhor escolhendo a outra”.
Não se falou mais nisso. Italiano, patrício de Dante, é provável que o dr. Abel Parente haja dividido a clínica de parteiro e esterilizador entre dois versos do poeta, dizendo a uns embriões: Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate; e a outros embriões: Venite a noi parlar, s’altri nol niega. Assim venceu um princípio, e nós fomos cuidar de questões novas, civis ou militares, políticas ou judiciárias.
Ultimamente (quinta-feira) escreveu aquele distinto prático uma carta ao Jornal do Commercio, contestando que o eucalipto pudesse curar a febre amarela. Não crê que a febre amarela — ou, cientificamente falando, o tifo icteroide — possa ser combatido com tal remédio ou com outro. Crê na serumpatia, e desde logo responde aos que puderem estranhar que ele, ginecologista, se ocupe de serumpatia, dizendo que “a serumpatia é a preocupação dos sábios de todos os países, e que o futuro da medicina está em seu poder”.
Até aqui nenhuma ilusão me tirou; mas onde a mão do rude clínico rasgou violentamente o véu que me cobria os olhos, foi naquele ponto em que escreveu isto: “Desde os tempos de Hipócrates até os nossos dias, a medicina só se ufana de três remédios verdadeiramente eficazes e específicos: o mercúrio contra a sífilis, o quinino contra a malária, o salicilato de sódio contra o reumatismo articular”.
Não acho, não conheço, não posso inventar palavras que digam a prostração da minha alma depois de ler o que acabais de ler. Vós, filhos de um século sem fé, podeis ler isso sem abalo; sois felizes. Ainda assim, como simples efeito intelectual, é impossível que aquele trecho da carta vos não haja trazido alguma turvação às ideias. Imaginai o que terá sido com este pobre de mim que, mental e moralmente, vivia do contrário, não achava limites aos específicos. Li muito Molière, muito Bocage, mas eram pessoas de engenho, sem autoridade científica; queriam rir. A pessoa que nos fala agora, tem um poder incontestável, é ungido pela ciência.
Criei-me na veneração da farmácia. Entre parênteses, e para responder a um dos meus leitores de Ouro Preto, se escrevo botica, às vezes, é por um costume da infância; ninguém falava então de outra maneira; os próprios farmacêuticos anunciavam-se assim, e a legislação chamava-os boticários, se me não engano. Botica vinha de longe, e propriamente não ofendia a ninguém. Anos depois, entrou a aparecer farmácia, e pouco a pouco foi tomando conta do terreno, até que de todo substituiu o primeiro nome. Eu assisti à queda de um e à ascensão do outro. Os que nasceram posteriormente, acostumados a ouvir farmácia, chegam a não entender o soneto de Tolentino: Numa escura botica encantoados etc., mas é assim com o resto; as palavras aposentam-se. Algumas ainda têm o magro ordenado sem gratificação, que lhes possam dar eruditos; outras caem na miséria e morrem de fome.
Mas, como ia dizendo, criei-me e vivi na veneração da farmácia. Perdi muita crença, o vento levou-me as ilusões mais verdes do jardim da minha alma; não me levou os específicos. Vem agora, não um homem qualquer, mas um competente, um áugure, e declara público e raso que, no capítulo dos específicos, há só três; tudo o mais ilusão. Criatura perversa, inimiga de corações humanos, que direito tens tu de amargurar os meus últimos dias e os de alguns desgraçados, como eu? Que me dás em troca deste imenso desastre? A serumpatia, dizes tu; ah! mas não era melhor decretar a serumpatia como um novo específico, um canonizado recente, encomendá-la à veneração dos leigos, por suas virtudes excelsas e sublimes? A ciência saberia o contrário; mas eu morreria com a boca doce dos meus primeiros anos.
Outros se ocupam também com a serumpatia, e buscam achar aí a morte da febre amarela; mas nenhum deles veio negar os específicos anteriores, não já daquela, mas de todas as doenças. Um deles, o dr. Miguel Couto, há quatro anos, trabalha em descobrir por semelhante via o meio de acabar com o nosso flagelo nacional. Não o achou, mas outros colegas, que ainda agora começam igual trabalho, reconhecem que a prioridade pertence ao dr. Couto; é o que lhe nega o dr. Abel Parente, cujo argumento é que ele não levou a ideia a efeito, nem escreveu nada. A diferença entre um e outro é que, no entender do primeiro, o serum deve ser mais ativo e eficaz, quanto mais próximo o convalescente estiver da terminação da moléstia; no do segundo, é que o serum deve ser extraído três ou quatro semanas depois de iniciada a convalescença.
Sobre a prioridade, direi apenas que não há Colombo sem Américo Vespúcio, e por conseguinte pode muito bem vir a ter razão o segundo dos facultativos. Este ainda ontem, respondendo ao primeiro, que parece não crer que os convalescentes se submetam à sangria, para salvar outros doentes, responde-lhe: “Creio que, salvo as exceções, todos oferecerão generosamente o próprio sangue para salvar a vida alheia ameaçada; creio que este ato generoso o homem praticaria também, se soubesse de antemão que o seu sangue deve servir para salvar a vida de um figadal inimigo, ainda se depois preciso for cravar-lhe um punhal no coração e ter o prazer infernal de beber o próprio sangue no sangue do inimigo”.
De pleno acordo. A minha única dúvida é se, antes de combinado o prazo, o doente receberá facilmente o sangue de um dia ou de quatro semanas. Eu hesitaria. Em suma, o que é preciso, é que a morte não continue a dizer aos enfermos que vão ter com ela: — Meus filhos, vireis para cá enquanto por lá não acertarem com o específico da febre amarela. Eu só conheço três específicos, desde Hipócrates, o mercúrio contra a sífilis, o quinino contra a malária, e o salicilato de sódio contra o reumatismo articular, e ainda assim não chegam para as encomendas; daí vem que muitos morrem, apesar de muito bem especificados.