Devia começar hoje por uma lauda fúnebre 

 

Fonte: Todas as crônicas: Aquarelas e outras crônicas (1859-1878). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2021, vol. 1, pp. 161-162. Publicada, originalmente, no Diário do Rio de Janeiro, de 17/07/1864.

Devia começar hoje por uma lauda fúnebre. Inverti a ordem e guardei-a para o fim.

O que me embaraçava, sobretudo, era a transição do triste para o ameno. A dor e o prazer são contíguos — na perna de Sócrates, segundo a legenda — na vida humana, segundo a observação dos tempos; mas, no folhetim é um erro entristecer os leitores para depois falar-lhes em assuntos amenos ou festivos.

Duvido que um secretário de Estado dê melhores explicações ao Parlamento do que eu aos meus leitores — outro Parlamento, onde não se fala, pelo menos que eu ouça.

Tenho sempre medo quando escrevo a palavra Parlamento ou a palavra parlamentar. Um descuido tipográfico pode levar-me a um trocadilho involuntário. Sistema parlamentar, composto às pressas, pode ficar um sistema para lamentar. Note-se bem que eu falo do erro de ser composto às pressas ou mal composto... pelos compositores.

O erro tipográfico só aproveitou a Malherbe.

Conheci um poeta que era, neste assunto, o mais infeliz de todos os poetas. Nunca publicou um verso que a impressão o não estropiasse. É o que ele dizia:

— Viste hoje aqueles versos na folha?...

— Vi.

O poeta acrescentava:

— Sou infeliz, meu amigo; tudo saiu errado; é desenganar; não publicarei mais impressos, vou publicar manuscritos.

É verdade que, às primeiras lamentações desta natureza, procurei corrigir mentalmente os versos errados, e vi que, se o eram, não cabia aos tipógrafos toda a culpa, a menos que estes não fossem as musas do referido poeta.

Fiz, porém, uma descoberta de que me ufano: os erros tipográficos eram autorizados pelo poeta; esta fraudezinha dava lugar a que se tornassem comuns as faltas da impressão e as faltas da inspiração.

De descoberta em descoberta, cheguei à solução de um problema, até então insolúvel:

— Um mau poeta com a consciência da sua incapacidade.

Se Cambises mandava pregar a pele de um juiz prevaricador na cadeira do juiz que lhe sucedia, devia-se, se possível fosse, mandar pregar a pele do poeta à porta de todas as oficinas tipográficas, como exemplo a futuros escritores.

Como estou no capítulo das descobertas, mencionarei mais outra que fiz esta semana... nas mãos de um amigo de infância, que já tinha feito anteriormente. Este gênero de descobrir não é novo.

A descoberta foi o original do testamento do cônego Filipe.

É um manuscrito venerável e legendário; a ele está ligado o nome daquele cônego, a quem se atribui tanta simplicidade, e de quem se contam tantas anedotas, falsas ou verdadeiras.

Nas minhas reminiscências da infância, tenho ainda viva a ideia de ter visto, quase diariamente, a tela a que alude a anedota do cônego e do pintor; lá estava a árvore, atrás da qual o cônego figurava estar escondido para não ser visto de Suzana.

Ora, o cônego, a quem se imputa tanta simplicidade, escreveu um testamento sério, grave, cheio de lucidez e de razão. Dificilmente se acredita ver ali a mão ou a cabeça do cônego Filipe.

Pois é autêntico. Foi encontrado entre os seus papéis, na casa em que ele habitou, casa tanto ou quanto histórica — a Casa do Livramento.

A conclusão a tirar de tudo isto, é que não há espírito que resista diante da ideia de fazer um testamento, e que, por mais simples que seja um homem, na ocasião de assinar as suas últimas disposições testamentárias, torna-se de uma sisudez e uma lucidez admiráveis.

Não passarei adiante sem fazer uma observação, a saber, que há uma simplicidade maior que a do cônego Filipe, é a simplicidade dos que lhe atribuem mais simplicidade do que ele tinha, lançando à conta do bom cônego tantas anedotas apócrifas. Aqui tenho menos em vista defender a memória do cônego do que deixar patente a minha opinião acerca de uma espécie de espirituosos por conta alheia, de que, infelizmente, abunda este mundo sublunar.

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