No momento em que escrevo estas linhas

 

Fonte: Todas as crônicas: Aquarelas e outras crônicas (1859-1878). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2021, vol. 1, pp. 339-341. Publicada, originalmente, na Ilustração Brasileira, de 15/08/1876, sob o pseudônimo Manassés.

No momento em que escrevo estas linhas, espreito cá de longe a leitora a preparar-se para a festa da Glória.

Há duas sortes de leitoras: a que vai ao outeiro, toma água benta, vê o fogo de artifício, e vai a pé para casa, se não pilha um bonde; e a que vai de casa às nove horas para ir ao baile da Secretaria de Estrangeiros.

Uma e outra preparam-se neste instante; sonham com a festa, pedem a Nossa Senhora que não mande chuva.

A segunda espera que a Clemence lhe apronte o vestido a tempo e hora oportuna; a primeira dá os últimos pontos na saia do que há de estrear hoje de tarde.

Esta festa da Glória é a Penha elegante, do vestido escorrido, da comenda e do claque; a Penha é a Glória da rosca no chapéu, garrafão ao lado, ramo verde na carruagem e turca no cérebro.

Ao cabo de tudo, é a mesma alegria e a mesmíssima diversão, e o que eu lastimo é que o fogo de artificio da Glória e o garrafão da Penha levem mais fiéis que o objeto essencial da festividade. Se é certo que tout chemin mène à Rome, não é certo que tout chemin mène au ciel.

Leve ou não leve, a verdade é que este ano há grande entusiasmo pela festa da Glória, e dizem-se maravilhas do baile da Secretaria de Estrangeiros.

Um amigo meu recusa dançar há seis semanas, com o plausível motivo de que não quer gastar as pernas. Só fala em francês para conversar com os diplomatas; estuda a questão do Oriente para dizer alguma coisa ao ministro da Inglaterra. Traz de cor a frase com que há de cortejar o ministro da Itália e o chefe da legação pontifícia. Ao primeiro dirá: Itália farà da sè. Ao segundo: Super hanc petram...

Não é um amigo, é um manual de conversação.

II

Estou convencido de que esse amigo não foi às corridas. Não foi ou não vai? Na hora em que escrevo — não vai; naquela em que o leitor pode ler estas linhas — não foi. Eu não sei combinar estes tempos da crônica. Vá ou não vá, fosse ou não fosse, o que eu quero dizer é que o dito meu amigo brilha pela ausência na festa do Prado Fluminense.

Eu sou obrigado a confessar que também lá não ponho os pés, em primeiro lugar porque os tenho moídos, em segundo lugar porque não gosto de ver correr cavalos nem touros. Eu gosto de ver correr o tempo e as coisas; só isso. Às vezes corro eu também atrás da sorte grande, e correria adiante de um cacete, sem grande esforço. Quanto a ver correr cavalos...

Vou dizer a minha opinião toda.

Cada homem simpatiza com um animal. Há quem goste de cães; eu adoro-os. Um cão, sobretudo se me conhece, se não guarda a chácara algum amigo, aonde vou, se não está dormindo, se não é leproso, se não tem dentes, oh! um cão é adorável. Outros amam os gatos. São gostos; mas sempre notarei que esse quadrúpede pachorrento e voluptuoso é sobretudo amado dos homens e mulheres de certa idade.

Os pássaros têm seus crentes. Alguns gostam de todo o bicho careta. Não são raros os que gostam do bicho de cozinha. Eu não gosto do cavalo.

Não gosto? Detesto-o; acho-o o mais intolerável dos quadrúpedes. É fátuo, é um pérfido, é um animal corruto. Sob pretexto de que os poetas o têm cantado de um modo épico ou de um modo lírico; de que é nobre; amigo do homem; de que vai à guerra; de que conduz moças bonitas; de que puxa coches sob o pretexto de uma infinidade de complacências que temos para com ele, o cavalo parece esmagar-nos com sua superioridade. Ele olha para nós com desprezo, relincha, prega-nos sustos, faz Hipólito em estilhas. É um elegante perverso, um tratante bem-educado; nada mais.

Vejam o burro. Que mansidão! Que filantropia! Esse puxa a carroça que nos traz água, faz andar a nora, e muitas vezes o genro, carrega fruta, carvão e hortaliças — puxa o bonde, coisas todas úteis e necessárias. No meio de tudo isso apanha e não se volta contra quem lhe dá. Dizem que é teimoso. Pode ser; algum defeito é natural que tenha um animal de tantos e tão variados méritos. Mas ser teimoso é algum pecado mortal? Além de teimoso, escoiceia alguma vez; mas o coice, que no cavalo é uma perversidade, no burro é um argumento, ultima ratio.

III

 E por falar neste animal, publicou-se há dias o recenseamento do Império, do qual se colige que 70% da nossa população não sabe ler.

Gosto dos algarismos, porque não são de meias-medidas nem de metáforas. Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para frases; o algarismo não tem frases, nem retórica.

Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso país, dirá:

— Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a apresentação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o sr. Fidélis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito a todos superior a todos os direitos.

A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:

— A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não leem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o sr. Meireles Queles; é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha — por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.

Replico eu:

— Mas, sr. Algarismo, creio que as instituições...

— As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: “consultar a nação, representantes da nação, os poderes da nação”; mas “consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%”. A opinião pública é uma metáfora sem base; há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na Câmara: “sr. presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem...” dirá uma coisa extremamente sensata.

E eu não sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque nós não temos base segura para os nossos discursos, e ele tem o recenseamento.

machado-de-assis