Os povos devem ter os seus santos 

 

Fonte: Todas as crônicas: Aquarelas e outras crônicas (1859-1878). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2021, vol. 1, pp. 314-316. Publicada, originalmente, no Diário do Rio de Janeiro,  de 25/04/1865.

Os povos devem ter os seus santos. Aquele que os tem merece o respeito da história, e está armado para a batalha do futuro.

Também o Brasil os tem e os venera; mas, para que a gratidão nacional assuma um caráter justo e solene, é preciso que não esqueça uns em proveito de outros; é preciso que todo aquele que tiver direito à santificação da história não se perca nas sombras da memória do povo.

É uma grande data 7 de setembro; a nação entusiasma-se com razão quando chega esse aniversário da nossa Independência. Mas a justiça e a gratidão pedem que, ao lado do dia 7 de setembro, se venere o dia 21 de abril. E quem se lembra do dia 21 de abril? Qual é a cerimônia, a manifestação pública?

Entretanto, foi nesse dia que, por sentença acordada entre os da alçada, o carrasco enforcou no Rocio, junto à rua dos Ciganos, o patriota Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado o Tiradentes.

A sentença que o condenou dizia que, uma vez enforcado, lhe fosse cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde seria pregada em um poste alto, até que o tempo a consumisse; e que o corpo, dividido em quatro pedaços, fosse pregado em postes altos, pelo caminho de Minas.

Xavier foi declarado infame, e infames os seus netos; os seus bens (pelo sistema de latrocínio legal do Antigo Regime) passaram ao fisco e à Câmara real. 

A casa em que morava foi arrasada e salgada.

Ora, o crime de Tiradentes foi simplesmente o crime de Pedro I e José Bonifácio. Ele apenas queria apressar o relógio do tempo; queria que o século XVIII, data de tantas liberdades, não caísse nos abismos do nada, sem deixar de pé a liberdade brasileira.

O desígnio era filho de alma patriótica; mas Tiradentes pagou caro a sua generosa sofreguidão. A ideia que devia robustecer e enflorar daí a 30 anos, não estava ainda de vez; a metrópole venceu a colônia; Tiradentes expirou pelo baraço da tirania.

Entre os vencidos de 1792, e os vencedores de 1822, não há senão a diferença dos resultados. Mas o livro de uma nação não é o livro de um merceeiro; ela não deve só contar com os resultados práticos, os ganhos positivos; a ideia, vencida ou triunfante, cinge de uma auréola a cabeça em que ardeu. A justiça real podia lavrar essa sentença digna dos tempos sombrios de Tibério; a justiça nacional, o povo de 7 de setembro, devia resgatar a memória dos mártires e colocá-los no panteon dos heróis.

No sentido desta reparação falou um dos nossos ilustrados colegas, nestas mesmas colunas, há quatro anos.

As palavras dele foram lidas e não atendidas; não ousamos esperar outra sorte às nossas palavras.

Entretanto, consignamos o fato: o dia 21 de abril passa despercebido para os brasileiros. Nem uma pedra, nem um hino, recordam a lutuosa tragédia do Rocio. A última brisa que beijou os cabelos de Xavier levou consigo a lembrança de tamanha imolação.

Pois bem, os brasileiros devem atender que este esquecimento é uma injustiça e uma ingratidão. Os deuses podem aprazer-se com as causas vencedoras: aos olhos do povo a vitória não deve ser o criterium da homenagem.

É certo que a geração atual tem uma desculpa na ausência da tradição; a geração passada legou-lhe o esquecimento dos mártires de 1792. Mas por que não resgata o erro de tantos anos? Por que não faz datar de si o exemplo às gerações futuras?

Falando assim, não nos dirigimos ao povo, que carece de iniciativa.

Tampouco alimentamos a ideia de uma dissensão política; conservadores ou liberais, todos os filhos da terra que Tiradentes queria tornar independente. Todavia, há razão para perguntar ao partido liberal, ao partido dos impulsos generosos, se não era uma bela ação, tomar ele a iniciativa de uma reparação semelhante; em vez de preocupar-se com as questões de subdelegados de paróquia e de influências de campanário.

Em desespero de causa, não hesitamos em volver os olhos para o príncipe que ocupa o trono brasileiro.

Os aduladores hão de ter-lhe lembrado que Tiradentes queria a república; mas o imperador é um homem ilustrado, e há de ver como se distancia dos aduladores o heroico alferes de Minas. Se os ânimos recuam diante de uma ideia que julgam ofensiva à monarquia, cabe ao príncipe sufocar os escrúpulos, tomando ele próprio  a iniciativa de um ato que seria uma das mais belas páginas do seu reinado. Um príncipe esclarecido e patriota não podia fazer um ação mais nobre, nem dar uma lição mais severa.

Uma cerimônia anual, com a presença do chefe da nação, com assistência do povo e dos funcionários do Estado  — eis uma coisa simples de fazer-se, e necessária para desarmar a justiça da história.

Não sabemos até que ponto devemos confiar nesta esperança; mas, ao menos, deixamos consignada a ideia.

Morro pela liberdade! disse Tiradentes do alto da forca: estas palavras se o Brasil não reparar a falta de tantos anos, serão um açoite inexorável para os filhos do Império.

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