Fonte: A bolsa & a vida, Companhia das Letras, 2012, pp. 80-83. Publicada, originalmente, no Correio da Manhã, de 23/05/1953, sob o pseudônimo de Antônio Crispim e, posteriormente, no Correio da Manhã, de 17/07/1960, com alterações.
Prezado Alípio:
Ontem à noite, ao sair você de nosso apartamento, onde veio em busca de sabedoria grega e só encontrou um conhaque e um gato por nome Crispim, assentei de reduzir a escrito o que lhe dissera. Aula de ceticismo? Não. Ele se aprende sozinho. A única coisa que se pode remotamente concluir do que conversamos é: não vale a pena praticar a literatura, se ela contribui para agravar a falta de caridade que trazemos do berço.
Por isso, e porque não adiantaria, não lhe dou conselhos. Dou-lhe anticonselhos, meu filho. E se o chamo de filho, perdoe: é balda de gente madura. Poderia chamar-lhe irmão, de tal maneira somos semelhantes, sem embargo do tempo e do pormenor físico: cultivamos ambos o real ilusório, que é um bem e um mal para a alma. Pouco resta fazer quando não nascemos para os negócios nem para a política nem para o mister guerreiro. Nosso negócio é a contemplação da nuvem. Que pelo menos ele não nos torne demasiado antipáticos aos olhos dos coetâneos absorvidos por ocupações mais seculares. Recolha pois estes apontamentos, Alípio, e saiba que eu o estimo:
I. Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.
II. Ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do mistério do mundo. Não arrombará nada. Os melhores escritores conseguem apenas reforçá-lo, e não exija de si tamanha proeza.
III. Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo.
IV. Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco na banalidade, que é a originalidade de todo mundo.
V. Leia muito e esqueça o mais que puder.
VI. Anote as ideias que lhe vierem na rua, para evitar desenvolvê-las. O acaso é mau conselheiro.
VII. Não fique baboso se lhe disserem que seu novo livro é melhor do que o anterior. Quer dizer que o anterior não era bom.
VIII. Mas se disserem que seu novo livro é pior do que o anterior, pode ser que falem a verdade.
IX. Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais que fazer.
X. Acha que sua infância foi maravilhosa e merece ser lembrada a todo momento em seus escritos? Seus companheiros de infância aí estão, e têm opinião diversa.
XI. Não cumprimente com humildade o escritor glorioso, nem o escritor obscuro com soberba. Às vezes nenhum deles vale nada, e na dúvida o melhor é ser atencioso para com o próximo, ainda que se trate de um escritor.
XII. O porteiro do seu edifício provavelmente ignora a existência, no imóvel, de um escritor excepcional. Não julgue por isso que todos os assalariados modestos sejam insensíveis à literatura, nem que haja obrigatoriamente escritores excepcionais em todos os andares.
XIII. Não tire cópias de suas cartas, pensando no futuro. O fogo, a umidade e as traças podem inutilizar sua cautela. É mais simples confiar na falta de método desses três críticos literários.
XIV. Procure fazer com que seu talento não melindre o de seus companheiros. Todos têm direito à presunção de genialidade exclusiva.
XV. Faça fichas de leitura. As papelarias apreciam esse hábito. As fichas absorverão o seu excesso de vitalidade e, não usadas, são inofensivas.
XVI. Se sentir propensão para a gang literária, instale-se no seio de sua geração e ataque. Não há polícia para esse gênero de atividade. O castigo são os companheiros e depois o tédio.
XVII. Não se julgue mais honesto que o seu amigo porque soube identificar um elogio falso, e ele não. Talvez você seja apenas mais duro de coração.
XVIII. Evite disputar prêmios literários. O pior que pode acontecer é você ganhá-los, conferidos por juízes que o seu senso crítico jamais premiaria.
XIX. Sua vaidade assume formas tão sutis que chega a confundir-se com modéstia. Faça um teste: proceda conscientemente como vaidoso, e verá como se sente à vontade.
XX. Seja mais tolerante com o cabotinismo de seu amigo; quase sempre esconde uma deficiência, e só impressiona a outros cabotinos.
XXI. Quanto ao seu próprio cabotinismo, ele esfriará se você observar que, na hipótese mais cristã, é objeto de tolerância alheia.
XXII. Antes de reproduzir na orelha de seu livro a opinião do confrade, pense, primeiro, que ele não autorizou a divulgação; segundo, que a opinião pode ser mera cortesia; terceiro, que você não admira tanto assim o confrade.
XXIII. Procure ser justo com os outros; se for muito difícil, bondoso; na pior eventualidade, omisso.
XXIV. Opinião duradoura é a que se mantém válida por três meses. Não exija maior coerência dos outros nem se sinta obrigado intelectualmente a tanto. E proceda à revisão periódica de suas admirações.
XXV. Procure não mentir, a não ser nos casos indicados pela polidez ou pela misericórdia. É arte que exige grande refinamento, e você será apanhado daqui a dez anos, se ficar famoso; e se não ficar, não terá valido a pena.
XXVI. Deixe-se fotografar à vontade, sem chamar os fotógrafos; não recuse autógrafos mas não se mortifique se não os pedirem. Homero não deixou cartas nem retratos, mas Baudelaire deixou uns e outros. O essencial se passa com outros papéis.
XXVII. Você tem um diário para explicar-se: é assim tão emaranhado? Para justificar-se: sua consciência anda meio turva? Para projetar-se no futuro: julga-se tão extraordinário?
XXVIII. Trate as corporações com cortesia, pois poderá vir a ingressar numa; com indiferença, pois o mais provável é não ingressar nunca.
XXIX. Aplique-se a não sofrer com o êxito de seu companheiro, admitindo embora que ele sofra com o de você. Por egoísmo, poupe-se qualquer espécie de sofrimento.
XXX. Boa composição moral é a de orgulho e humildade; esta nos absolve de nossas fraquezas, aquele nos impede de cair em outras. Quanto aos santos-escritores, é de supor que foram canonizados apesar da condição literária.
XXXI. Seja discreto. É tão mais cômodo!