Fonte: Correio da Manhã, de 17/06/1954.
“Quando Bauer, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera, logo o suspeitoso Naranjo lhe partiu ao encalço, mas já Brandãozinho, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em redor animavam os contendores. A uma investida de Cárdenas, o de fera catadura, o couro inquieto quase se foi depositar no arco de Castilho, que com torva face o repeliu. Eis que Djalma, de aladas plantas, rompe entre os adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Julinho, que a transfere ao valoroso Didi, e este por sua vez a comunica ao belicoso Pinga. A essa altura, já o cansaço e o suor chegam aos joelhos dos combatentes, mas o Atrida enfurecido, como o leão que, fiado na sua força, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cerviz e despedaçando-a com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe o sangue e as entranhas — investe contra o desprevenido Naranjo e atira-o sobre a verdejante relva calcada por tantos pés celestes. Os velozes Torres, Lamadrid e Arellano quedam paralisados, tanto o pálido temor os domina; e é quando o divino Baltasar, a quem Zeus infundiu sua energia e destreza, arremete com a submissa pelota e vai plantá-la, como pomba mansa, entre os pés do siderado Carbajal...”
Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros e mexicanos, e a de todos os jogos: à maneira de Homero. Mas o estilo atual é outro, e o sentimento dramático se orna de termos técnicos. Mesmo assim, quando o cronista especializado informa que o Botafogo “não estava numa tarde de grande inspiração” ou que Zizinho “se desempenhou com o seu habitual talento”, fico imaginando que há no futebol valores transcendentes, que nós, simples curiosos, não captamos, mas que o bom torcedor vai intuindo com a argúcia apurada em uma longa educação da vista.
Confesso que o futebol me aturde, porque não sei chegar até o seu mistério. Entretanto, a criança menos informada o possui. Sua magia opera com igual eficiência sobre eruditos e simples, unifica e separa como as grandes paixões coletivas. Contudo, essa é uma paixão individual mais que todas.
Cada um tem sua maneira própria de avaliar as coisas do gramado, e onde este vê a arte mais fina, outro apenas denuncia a barbeiragem ou talvez um golpe ignominioso. Pelo nosso clube fazemos o possível, e principalmente o impossível. O jogador nos importa menos que suas cores, e se muda de camisa pode baixar em nossa estima, à revelia de toda justiça.
A estética do torcedor é inconsciente; ele ama o belo através de movimentos conjugados, astuciosos e viris, que lhe produzem uma sublime euforia, mas se lhe perguntam o que sente, exprimirá antes uma emoção política. Somos fluminenses ou vascos pela necessidade de optar, como somos liberais, socialistas ou reacionários. Apenas, se não é rara a mudança do indivíduo de um para outro partido, nunca se viu, que eu saiba, torcedor de um clube abandoná-lo em favor de outro.
Finalmente, a grande ilusão do gol confere alta dignidade à paixão popular, que não visa a um resultado positivo e duradouro no plano real, mas se satisfaz com uma abstração: 22 homens se atiram uns contra outros, e era de esperar que os mais combativos ou engenhosos, saindo triunfantes, deixassem os demais no campo, arrebentados. Não. O objeto de couro transpõe uma linha convencional, e o que se chama de vitória aparece aos olhos de todos com uma evidência corporal que dispensa a imolação física. Não podemos acusar de primitivismo aos que se satisfazem com este resultado ideal.