Ano-Novo, máquina de escrever nova. Ganhei de Papai Noel, a quem escrevera uma cartinha queixando-me de que as duas que já tinha — uma pesada, para os trabalhos que exigem alta velocidade, e outra menorzinha, portátil, para viagens e frivolidades — estavam ambas com defeito. Ficariam ambas longo tempo na oficina — mas, enquanto isso, como iria eu trabalhar, se sou canhoto das duas mãos, ou seja, analfabeto de pai e mãe em matéria de caligrafia?
O bom velhinho, que aliás é uma bela mulher de grandes olhos, considerando que não fui um menino de todo mau em 1974, tendo até praticado duas ou três boas ações, trouxe-me então de presente esta terceira ferramenta de trabalho, na qual estou agora passeando feliz como o guri no seu velocípede ou o adolescente na sua bicicleta.
Nesta maquininha, cujas teclas batem macias no papel, devo exprimir apenas os belos sentimentos, descrever apenas as experiências positivas, silenciando as variações sombrias de meu comportamento esquizotímico. Se depender de nós, de mim e dela, só haverá domingos neste 1975, que ora se inicia. Haverá reconciliação por todos os lados, paz e amizade urbi et orbi, amor entre nações, entre irmãos, entre namorados. As armas ficarão floridas como em Portugal na memorável jornada do cravo vermelho. O pão se multiplicará, cabendo uma côdea — que digo eu? — uma imensa bisnaga com manteiga e geleia a cada criança faminta. Também se multiplicarão os peixes, de modo que cada família, ainda ontem condenada à morte por inanição, provará finalmente, e fartamente, a legítima moqueca de peixe à baiana.
Ah como é bom andar de velocípede!
Aqui poderão florir as 100 flores, como diria o relho Mao Tsé-Tung, a música, o teatro, o cinema que venham livres ao disco, ao palco, à tela, expondo em arte aquilo que vem do fundo do coração de cada artista, seja alegre, triste ou revoltado: uma primavera de emoções desencontradas e exaltantes.
No giro das constelações de abril ouviremos, todos, o tilintar da alegria cósmica; cada estrela dessas que brilham no céu, a olho nu, caberá a uma de cada mulher que, sendo amada, saiba amar, e a lua deslizará, satisfeita, na piscina azul da concórdia.
Eis... E assim que as maquininhas de escrever, quando novas, nos falam. São como as cartas; não mentem jamais. Tão belas são suas letrinhas, tão tenras e ternas e inocentes, que as mãos do datilógrafo se recusam a arrumá-las em sofrimento. Safadinhas elas são, escorrendo em mansidão que na verdade esconde um desígnio muito firme. Mansas, mas só vão para onde querem, e só querem ir para o mar dos bons presságios.