Fonte: Jornal do Brasil, de 5/04/1972.

Às sete horas da manhã é servido o café com leite, pão e manteiga. Sentam-se à mesa da copa o homem, a mulher e a filha deles, o homem já de gravata e a menina já uniformizada. A mulher vem de robe de chambre, por trabalhar só na parte da tarde. A cena é sempre a mesma: ele chega com os olhos presos no jornal, senta-se sem interromper a leitura e só se dispõe a quebrar o jejum quando a mulher anuncia que o café está servido. Então, cuidadosamente, dobra o jornal em quatro movimentos, dando-lhe o formato de um livro, e colocando-o ao lado da xícara, serve-se de açúcar, de manteiga, de leite, em gestos automatizados, de modo a continuar lendo a parte do jornal que despertou primeiro a sua curiosidade.

Acontece, porém — e é este o caso presente — que o assunto do dia o empolga de tal maneira, além de ocupar toda a página, que ele não tem condições nem desejo de dobrar o jornal. Mergulhado nas notícias, esquece completamente a família e o ritual da manhã. A mulher avisa: “Meu bem, o café está servido”, mas já sabe o que ele vai responder (é fatal):

— Me dê uma xícara pequena que eu só quero um cafezinho.

Mãe e filha se entreolham, mortas de curiosidade, pois já perceberam que aconteceu algo muitíssimo importante, algo que se deve absorver palavra por palavra, tornando imperiosa a ida ao trabalho com o estômago vazio. Após tantos anos de casados, sabe perfeitamente a mulher que ele fica chateado se lhe fazem perguntas sobre o que anda lendo no jornal, mas a curiosidade é tentação a que mulher alguma resiste, de modo que ela prefere chateá-lo a se mortificar. Assim:

— Paizinho, não me diga que o Flamengo comprou o Tostão... 

É fatal: ele suspira aborrecido e responde com voz sonâmbula — aquela que usa quando nem a própria voz deve perturbá-lo:

— Não quero mais saber dessa novela barata. A mercadoria custa quase Cr$ 6 bilhões... 

— Qual mercadoria?

— Tostão, o tal Felício Brandi considera Tostão uma mercadoria como qualquer outra.

Ela põe mais açúcar no café, parte ao meio o pão e enquanto passa manteiga volta a irritá-lo, sentindo nisso um certo prazer:

— Como é que está a Samitri?

Outro suspiro, equivalente a um palavrão. O nariz franze, e ele a contragosto torna a falar:

— Vai bem. Muito bem. Já lhe disse que quem aplica na Bolsa deve esquecer que aplicou. Não se preocupe com o seu dinheiro, que mais cedo ou mais tarde ele se multiplica.

Se não é Bolsa nem futebol, qual será a notícia do dia, essa novidade apaixonante para um homem? Ela já fez o que pôde para saber. Agora é melhor ficar quieta, do contrário ele explode.

Nisto a menina, que também conhece a fundo a mulher e o homem, pois é filha deles há 15 anos, resolve dar uma mãozinha à mãe. Por ela, a menina-moça, o pai interrompe qualquer coisa e responde a qualquer pergunta. É a princesinha da casa. Usando deste privilégio, dirige-se ao homem:

— Olha aí, coroa, a velha está grilada com essa tua ligação no JB. Vê se dá uma colher de chá pra gente. Vamos lá, que diabo é isso que está acontecendo?

Derrotado pelo amor, ele só então tira os olhos do jornal, suspira fundo com expressão ainda levemente aborrecida e informa:

— Está acontecendo justamente o diabo. O Vietname do Norte atravessou a Zona Desmilitarizada, quer dizer... Os americanos dizem que foi o Vietname do Norte, mas eu prefiro acreditar no que dizem os vietcongs: que foram eles, os rebeldes do Sul, os responsáveis pela ofensiva irresistível. Os soldados do Vietname do Sul estão fugindo espavoridos e milhares de refugiados são vistos nas estradas. Os americanos já jogaram umas 200 bombas, daquelas que abrem um buraco enorme, mas tudo indica que os vietcongs vão acabar ocupando Hué. 

— Ué... Hué? — trocadilhou sem querer a menina. — Esse nome não me é estranho.

— Você já deve ter lido nos jornais ou visto na televisão.

— Não senhor. Eu tenho isso guardado na gaveta. Quer apostar?

Ela se levanta e vai ao seu quarto, de onde volta com um recorte de jornal colado numa folha em branco.

— Não falei? — diz ela, mostrando o recorte ao pai. Você, hem, cara, está me saindo um coroa pra lá de devagar... Vive reclamando que todo jogo no Maracanã termina zero a zero e, no entanto, está aí encucado com uma guerra que não sai do lugar. Essa guerra já era, já empatou há muito tempo. Com efeito, o recorte de jornal, datado de 1968, anunciava que os vietcongs estavam entrando em Hué... 

jose-carlos-oliveira