Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria.  Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil, Todavia, 2021, pp.72-73. Publicada, originalmente, no Diário Carioca, de 22/08/1953,

Estava espanado na cama, morto de fome, sem um tostão no paletó que eu via sobre o espaldar na cadeira. Era o ano de 1941, quando este gordo cronista pesava menos 50 quilos e 50 remorsos. Morávamos no edifício Andraus e acreditávamos num sol de praia que nos dava a pigmentação necessária à dignidade de um moço de Copacabana. Passava do meio-dia, o banho de mar tinha sido muito agradável, mas dele só restava aquela fome sem remédio, sem ter onde matar, ali, nas redondezas do Posto 5. O jeito era fechar os olhos e pedir a Deus umas horas de sono para o santo esquecimento da nossa pobreza. Pensei em vender o canário-do-império, comprado na véspera pelo meu companheiro de apartamento. Ou seria mais fácil comê-lo frito? Enquanto rejeitava essas duas soluções, entrou de quarto adentro um cheiro de comida gostosa que, de tão ativo, devia ser um assado de novilha rondando a minha miséria. Levantei-me num pulo e abri a porta. Ao lado, no 29, o mensageiro da pensão acabava de deixar uma marmita de razoável gabarito, rescendendo carne feita no torresmo. Lembrei-me de coisas honestas e sagradas — minha mãe e a fita azul da Congregação Mariana —, mas lembrei-me muito mais de mim, um andarilho, um coitado, a quem a Comissão de Inquérito do céu jamais negaria perdão por crime de gula. Tirei a tampa da primeira panelinha e dei com três fatias de carne assada (dessas que são escuras e tomam todo o gosto do molho) ao lado de um purê sem importância e de uma folha de alface própria para canário. Não perdi mais tempo. Revi a solidão do corredor, meti a mão e ia tirando as três fatias quando a porta se abriu. Agachado, humilhadíssimo, vi primeiro os pés da moça; depois, os tornozelos, os joelhos, as coxas e, finalmente, a sunga amarela. Estávamos, agora, frente a frente. Os olhos dela (verdes), indignados. Os meus (marrons mesmo), suplicantes. Ela cheia de razão e eu, apenas, com fome. O silêncio demorava, quando ela o quebrou: "Faça o favor de me dizer seu nome". Respondi, com a maior dignidade deste mundo, disposto a todos os males que porventura caíssem sobre minha culpa: "Fernando Lobo, minha senhora".

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