Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria.  Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil, Todavia, 2021, pp.409-410. Publicada, originalmente, em O Globo, de 20/03/1957.

O aniversariante esperou a meia-noite para ver se alguma coisa lhe acontecia quando chegasse a nova idade. Já fizera anos algumas vezes, mas não assim, tantos... E ainda não pensara nisso de acontecer alguma coisa, de sentir uma transformação qualquer, no primeiro instante do ano a mais. Que fosse um novo gosto na saliva, uma impressão mais nítida e mais quente do conteúdo sanguíneo; ou, no espírito, uma descoberta ou outra dúvida. Queria sentir uma mudança qualquer. O aparecimento de mais uma ruga. Uma coisa nova, nem que fosse de velhice. E deu meia-noite. E ele tomou nos pulmões o primeiro ar do primeiro minuto. Não sentiu diferença. Era o mesmo, também, o gosto de sua boca. Olhou as mãos. As mesmas, cheias de sinais. E, no espelho, o rosto resignado estava igual ao da última idade. A substituída.

Então, por quê? Em que dias teriam envelhecido a boca, os olhos e o pescoço? E quando os ombros e o peito? Tinha sido aos poucos e sempre, de instante em instante, como uma montanha que o vento e a chuva envelhecem, de areia em areia.

O homem se desinteressou então pela idade nova. Queria sentir alguma coisa quebrar-se dentro de si, ou criar-se, com um pouco de dor, como devem doer todas as coisas que começam e que acabam. Que um cabelo branco saltasse do penteado, como que nascendo de um gosto da eternidade!

Ei-lo, tal qual era, havia poucos minutos, sozinho na casa em que todos dormiam descuidados. Veio-lhe uma preocupação menos séria. Alguém o estaria lembrando? Mesmo sem saudade ou alguma outra ternura, alguém estaria pensando em sua vida? Isto já não lhe era de muita importância, porque se habituara ao esquecimento dos outros. Gostaria de saber por saber e, talvez, para retribuir quando pudesse. Depois, livrando-se desta preocupação mais frívola, pensou muito seriamente em que, quando chegasse aos 40 anos, já seria um velho muito velho. E pediu, falando baixo, que Deus lhe preservasse o espírito, para que dele pudesse viver. Que as coisas não deixassem de acontecer dentro de si, mesmo quando quase tudo lhe fosse negado no mundo em volta. Em seguida, ergueu a cabeça e fitou o céu. E sentiu o quanto era misterioso haver uma consciência de homem à qual as estrelas pudessem chegar, como a um lago. Saiu andando, feliz. Havia aniversariado.

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