Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil, Todavia, 2021, pp.360-362. Publicada, originalmente, em O Globo, de 23/05/1958.
Acabo de saber, só Deus sabe com que estranha surpresa, da minha escolha para jurado durante o mês de junho. Transmitiu-me o recado, ou melhor, a intimação, pessoa que me conhece extensamente e vossa excelência não sabe em que estado de pânico me foi dado o seu recado. Um homem que me conhece e que sabe da minha aversão aos julgamentos pedia-me, por telefone, que procurasse o doutor juiz o mais depressa possível e apresentasse uma desculpa qualquer. E acrescentava, com a voz a tremer: “Trate disto depressa, porque amanhã já será tarde para você livrar-se”.
Meu caro dr. Stampa, antes de mais nada, devo confessar uma preliminar necessária: sou uma pessoa que, desde que me lembro de mim, só tenho vivido para passar por experiências. As mais tristes e dolorosas — todas me fascinam. Minha vontade de ver, ouvir e sentir é tanta e tão velha, que, um dia, convenci-me de que sou um homem de coragem. Esta convicção deixou de parecer-se com uma dúvida em todas as vezes que passei por alguns riscos de vida e consegui assistir ao meu perigo (friamente, assistir ao meu perigo), enquanto meus companheiros de desdita se perdiam dentro, em meio e em volta de si mesmos. Vi pessoas que faziam parte da minha mesma viagem para a morte chorar e blasfemar. Outras, mais dóceis e, talvez, mais espertas, clamavam por Deus em nome de filhos, parente de sangue e de amor. Em tudo, eu só sentia a beleza da vida, mesmo nesta beleza de morrer de modo trágico, de morrer antes, cada vez mais certo da imensa inutilidade de morrer. E o acontecimento mais inútil do decurso humano, meu caro dr. Stampa. Nada é tão de mau gosto quanto a morte.
Expliquei-lhe, assim demasiado, nada mais que a minha vontade de experimentar ser um jurado, para sentir em minhas mãos e, muito mais, em meu coração, o preço e o tamanho da liberdade. Eu, em função de jurado, teria que responder a uma pergunta e, nesse instante intensíssimo, seria levado a dizer sim ou não. O que é o homem para dizer “sim” e “não”? Em causa própria, passível de renúncia e generosidade, tenho dito muitos “sins” em cima da minha dor e milhares de “nãos” contra a minha alegria. Mas sei e sinto que não posso dizer “sim” e “não” diante da aspiração do meu próximo, de quem não posso renunciar nenhum sentimento ou esperança — nenhuma ambição, por menor que seja. Não posso julgar culpado um semelhante meu, porque não sei onde começam e acabam as culpas, na vida. Por que, da vida, só o homem atrai as culpas, quando a vida, embora feita muito mais de gente que de qualquer outra espécie, é vasta e vazia, enorme e desconhecida? Não existe o homem que faz. E sim o homem que é. Se tomarmos para exemplo o fazer bem: quem se compensou, até hoje, por fazer bem, a não ser de si para si? Por que, então, no caso do fazer mal, o castigo é tão zelado e necessário? Não, meu meritíssimo juiz, ainda não existia nada definitivo sobre a pena e as penas. Ninguém inventou a fita métrica que possa precisar uma culpa. Se vossa excelência me considerar um adepto da impunidade (este seria um extremo de sua reação), eu direi que não, que o homem deve sofrer uma solidão ruim (qualquer que seja) para sentir-se homem e só, grande e desamparado, e a partir de um privilegiado momento de lucidez, salvar-se. Mas sempre por si mesmo. Que falta enorme de autoexame é ser-se um jurado! Que descuido imensurável de vaidade é ser-se um juiz!
Que haja réus, juiz, promotores públicos, advogados de defesa, jurados. Mas ao largo da minha reflexão. Que se condenem e se perdoem as pessoas mais culpadas. Que se condene e perdoe o inocente universal, mas sempre longe, a uma grande margem da minha dependência de “sins” e “nãos”. Fica aqui bem explicado que não quero pertencer ao seu conselho de sentença: que não vou (nem preso) ser seu jurado e, nisso, que eu não tenho nada a ver com o castigo. Além do mais, mesmo que a fascinante experiência de julgar (ou de sentir em mim a angústia de ter que julgar) me vencesse, devo, cordialmente, explicar ao juiz, dr. Bandeira Stampa, que não posso fazer parte da mesa de júri que funcionará em junho. Trabalho dia e noite e ganho pelo que faço. Não posso faltar a nenhum dos compromissos assumidos — às minhas obrigações, que são todas públicas. Portanto, esqueça isto. Eu não sei castigar ninguém e perdoar nem sempre sei, porque devo ter perdoado sempre antes, à margem e depois do perdão. Devo ter sempre perdoado mal. Tanto quanto castiguei. Dispense-me. Procure um homem que seja mais compenetrado, que tenha mais noção de seu poder, que saiba mais do erro e do acerto, que ame a lei mais que ao instinto, que seja, enfim, mais ingênuo e menos livre do que eu.
Não me pergunte, em volta, pelo caso do japonês. Não estou a julgá-lo. Trata-se de um pobre coitado que tentou roubar-me e de quem arranquei o roubo das mãos (um quadro de Di e outro de Cícero). Quero-o desassossegado e insone, por isso. Mais nada. O resto é o mundo, onde várias pessoas serão eternamente burras, com arrogância e entusiasmo.
De vossa excelência, jamais um jurado.