Fonte: Toda crônica.  Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, p. 564. Publicada, originalmente, no Boletim Mundial (ABI),  de 16/07/1919.

A travessia do Atlântico, operada ultimamente, de oeste para leste, por um aeroplano, e em sentido contrário por uma aeronave, parece não ter despertado entre as massas de todos os países o entusiasmo que era de esperar.

Pouco vejo falar nesses sucessos, e pouco os jornais procuram desenvolver a notícia, explorá-la, sinal certo de que, ao menos entre nós, ela não interessa e apaixona.

Nem sempre foi assim. Certas vezes, proezas parecidas foram recebidas debaixo do maior entusiasmo; em outras, o populacho castigou severamente o inovador audaz.

Papin, que, segundo parece, foi o primeiro que construiu uma máquina a vapor e aplicou-a a um barco, partiu, em 1707, de Canel, sobre o Fulda, chegou a Munden, no Hanover, para passar dali para o Weses e ir à Inglaterra.

Mas os barqueiros deste último rio, que tinham um qualquer privilégio de navegação nele, não viram com bons olhos aquele barco que andava sozinho e destruíram-no a machadadas.

Todos conhecem o fim desse grande homem. Morreu esquecido, pobre, até à penúria.

Creio que foi Thiers que afirmou não crer no futuro dos caminhos de ferro; e uma sociedade sábia francesa opôs-se à sua introdução na França, sob o pretexto, entre muitos outros, que eram prejudiciais à visão ou qualquer cousa assim.

Os sábios que deram esse parecer, não sei se viveram muito, para verificar o erro dos seus prognósticos; mas Thiers viveu muito para assistir, em 1870, a derrota da França, causada em grande parte pelo aproveitamento hábil das estradas de ferro na guerra, que os alemães souberam fazer.

Tenho visto sucederem-se prodígios de toda a ordem, no terreno das invenções mecânicas e aplicações práticas de aquisições científicas, sem testemunhas, contudo, da parte do grosso dos meus semelhantes com espanto maior do que causaria a chegada de um amigo esperado.

Quando Bleriot atravessou a Mancha, há alguns anos, ninguém se abalou, ninguém se entusiasmou. Parecia que todos, reconhecendo o valor da façanha, tinham, porém, oculta nas dobras dos lábios esta interrogação: Só?

Os raios X vieram para ver através de certos corpos opacos – uma proeza verdadeiramente de feiticeiro alquimista da alta Idade Média; e ninguém ficou espantado. O que toda a gente queria saber, era como eles faziam tal estupefação e o porquê da cousa.

Pouca gente, ou talvez ninguém, seria capaz de explicar tais cousas. Os mais francos, que tinham amor à verdade, diziam simplesmente que era uma propriedade de certos raios luminosos descobertos por um sábio alemão, Roentgen; os eloquentes baralhavam histórias do espectro solar, raios ultravioleta, tubos de Corovkes, raios catódicos, etc., etc., e o pobre-diabo saía sabendo menos do que dantes.

Essa prestimosa descoberta, que tem algo de diabólica e fria dos poderes humanos, não provocou nenhuma manifestação de praça pública, em nenhuma cidade do mundo. Entretanto, uma batalha em que morrem centenas de milhares de pobres-diabos que não sabem até por que morrem, origina luminárias nos edifícios públicos, procissões, missas, bailes, chás dançantes, discursos acadêmicos e todo o cortejo de tolices com que se tece a nossa vida.

Ainda é bem quando há batalha de verdade, que, em todo o caso, é uma cousa séria. Às vezes, mesmo, não há e a falta atrapalha pouco, pois levam o regozijo até ao Arco do Triunfo.

Calígula, no contar de Suetônio, queria ter as honras do Triunfo; queria desfilar com as suas legiões, suas presas de guerra e seus cativos, diante de toda Roma, até ao Capitólio, para ser coroado ou cousa parecida. Não teve dúvidas; organizou uma guerra. Partiu para as costas da Bretanha, não sei com quantas legiões, assim como quem vai invadir a Inglaterra; e, em chegando lá, mandou que os seus legionários apanhassem conchas nas praias...

Depois disso, não podia o Senado romano deixar de conferir-lhe o Triunfo; e o imperator entrou em Roma triunfalmente, sarapintadas as faces de vermelho, sentado orgulhosamente numa cadeira de marfim... Imperator!

O passado é mesmo um pesadelo. Queria só falar de cousas mais ou menos do presente; entretanto, afasto-me dele e venho contar cousas desse bufão imperial e todo-poderoso, mas que é muito simpático, pois foi um dos poucos que soube debochar a fundo esta idiota espécie animal que é a nossa.

O telégrafo sem fio, reatando o que considerava, também não causou a sua descoberta a emoção que era de esperar.

O povo parece não sentir o quanto há nessas descobertas de profundo esforço intelectual, de encadeamento de esforços de gerações e gerações de sábios e estudiosos. A seu ver, todas essas descobertas e invenções são sortilégios, peloticas, caprichos da sorte, que favorece alguns maníacos dessas cousas; e não só as enxerga assim, como não mede também o alcance e os resultados dessas descobertas e invenções.

Se agora a massa popular acolhe com uma quase indiferença aprovativa essas inovações de toda a sorte, talvez pelo cansaço de vê-las repetirem-se de ano para ano, não se pode concluir por isso que ela tenha adquirido mais inteligência do que as anteriores, quando as acolhiam com hostilidade. A demonstração de inteligência seria acolhê-las, compreendê-las com calor, com entusiasmo; e não assim como cousa já anunciada. Parece daí inferir-se que o ensino primário obrigatório ou disseminado em toda a parte não fez grandes milagres intelectuais na mentalidade das multidões; o que pode ter feito é pescar mais algumas inteligências, nas camadas humilíssimas, para sofrerem com o estudo e a insuficiência de meios para completá-lo até o esplendor com que sonharam.

Na Alemanha e na França, há anos, foi feito um inquérito entre cem recrutas sobre pontos da história de ambos os países. Pois bem: mais de 50% deles não sabia bem quem eram Bismarck e Jeanne d’Arc, respectivamente para uma e outra nação.

Não tenho aqui o livro em que li isto, mas o que digo aí não pode estar muito longe da realidade.

O século que passou deu de alguma forma à mentalidade dos agrupamentos humanos esse sentimento confuso do poder da ciência e das artes mecânicas; mas, entretanto, não lhes deu concomitantemente um vislumbre qualquer da eficácia de certas modificações no campo espiritual a que os antigos chamaram das ciências morais e políticas.

Entre nós (e é só onde eu alcanço), a multidão, a massa é completamente mismeísta contra tudo que se trata de reforma econômica, de inovação social. Não lhe falem em socialismo, em anarquismo, em maximalismo; a sua mentalidade não pode conceber essas cousas. Há de haver sempre um presidente da República que, por melhor que seja, terá sempre a sua ação diminuída ao passar pela mão de não sei quantos subordinados; há de haver sempre um Congresso, onde os homens de talento e de visão se perdem no meio dos estreitamentos políticos, gente medíocre, mesmo quando tem talento; há de haver S. Exª. o chefe de polícia, o soldado, o guarda civil, etc. No campo econômico, então, nem se fala! O rico é o rico, legitimamente rico e pode empregar a sua riqueza como quiser, etc., etc.

Parece ilógico que uma certa receptividade mais ou menos avançada para as conquistas humanas, no campo da atividade mecânica e industrial, não corresponda, no nosso povo, a uma igual no âmbito das cogitações sociais e morais. Tal, porém, se dá.

A nossa população (falo do que sei) não pode ainda ver até que ponto uma cousa se relaciona com a outra e até que ponto uma reage sobre a outra.

Sem querer dizer mal do nosso povo, eu tenho para mim que ele espera a voz dos mestres que, no caso, hão de ser outros povos. 

lima-barreto