Fonte: Quadrante 1, Edirtora do Autor, 1962, pp. 151-153. 

Conta o jornal que Nicole Renaud, pequena de três anos, foi carregada por um urso, quando, brincando no jardim da casa de veraneio de seus pais, fugiu para passear no bosque próximo. Dá ainda o telegrama de Quebec que voluntários e soldados, auxiliados por aviões, estão ajudando a procurar Nicole. As pegadas do urso são claramente vistas à entrada do bosque.

Você deve saber, ouvinte: são três os bichos de magia da infância: o coelho, o gato e o urso. Podem os meninos brincar com cachorros, possuir macacos e papagaios. O romanesco estará no Gato de botas, nos coelhinhos da Páscoa, nos ursos dos Três ursinhos. Nicole está na idade do amor aos ursos de pelúcia. Fazem-se belos ursos para as crianças. Desde os grandes, de veludo marrom, com focinhos de verniz, recheados e duros, que têm rodinhas nos pés e levam crianças ao lombo, até os brancos, pequenos, vestidos de palhacinhos. Há também os ursos cômodos, moles, de pano amarelo, que se não estragam, bem se deixam surrar à vontade, e que são levados debaixo do braço, sempre perfeitos e como encantadoras vítimas, felizes, inconscientes. Há os ursos dos livros de figura, dos contos de fada. Eles — os pequeninos como Nicole — conhecem esses tipos como caricaturas amáveis dos homens. Homenzarrões bondosos e peludos são também os que são vistos nos circos, jogando boxe e bebendo cerveja. O andar é cômico, a obediência é padrão. São capazes de sentar à mesa com o dono e deixar que lhes ponham o guardanapo. São imagens da gravidade dos adultos, subjugada e, enfim, terna.

Parecem um pai ou um avô amestrados.

Ah, Nicole sabe tudo a respeito de ursos, está formada nessa ciência com seus três anos: “Que nas casas dos ursos há uma mesa com um pratão para Papai Urso, um prato regular para Mamãe, e um pratinho pequenininho para o filho. A casinha é uma beleza. Cheira a flor, tem potes de mel, está no meio do bosque, bem escondida dos homens”.

Nicole é uma descendente francesa do Canadá, tem olhos pretos, é viva como um azougue, e explora o mundo. Quando a deixaram sozinha, ela pensou, um pouco com medo, no bosque do Chapeuzinho Vermelho, mas a história dos três ursos foi o que a animou. A casinha deles era lá dentro do mato. Tão fácil! Os pais não a levavam nunca para lá! E Nicole foi andando, abriu o portãozinho de laca branca, e de repente se sentiu pequenina como uma formiga na estrada. Mas o bosque? O bosque onde Papai e Mamãe nunca passeiam? Ela iria ver os coelhinhos fazendo piquenique, na relva e na sombra, e dando risadinhas gostosas. E iria avistar, principalmente, um urso de verdade — não aqueles bobos que ela punha de cabeça para baixo, destituídos de todo poder.

À entrada do bosque ouviu um barulho esquisito. Folhas mexeram, e um ursão ruivo, de verdade, bem de verdade — Nicole soube logo — apareceu. Ela parou, ele parou também.

— Papai Urso — disse Nicole para o ursão.  Você me leva para sua casa?

Então o urso avançou para Nicole, e a carregou, como queria a menina. Na sua casa de urso tem hoje mais um prato, que não é tão pequenininho como o de seu filho. É de Nicole. E todos os coelhos do bosque, nas noites de luar, dançam e saltam, representando só para a menina. Mas como Nicole não quer voltar — participa do segredo do bosque — inútil o voo de tantos aviões à procura da menina. Em vão gritarão por ela todas as humanas vozes desesperadas. A pequena canadense achou a aurora do encanto.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.