Fonte: A Manhã, de 7/01/1949.

Ia ela dar uma série de concertos e precisava de uns retratos. Havia dez anos que tirara uma fotografia — dessas que se escolhem em álbuns, e requerem penteado especial e vestido novo. Ninguém está fora da vaidade do retrato bonito. É doce que se veja o próprio com a sua cara, porém melhorada, a sua face ideal, depois do tratamento fotográfico de um anúncio de creme de beleza. É bom que se folgue a criatura com a perspectiva de “poder ser assim”, sendo a mesma, e reconhecida em sua atraente imagem pelo pai, mãe, ou qualquer amigo em terceiro grau. “É uma bela fotografia, dirão: Está muito parecida”!

Há dez anos passados, como já se sabe nesta crônica — tirou ela um retrato com foco luminoso sobre os cabelos e vaselina pelos lábios. Pôs um vestido juvenil. Tinha 27, e aparentou 17, no preto e branco. Os jornais falavam na “jovem concertista”. Mas os anos foram correndo, e houve um dia que alguém estranhou:

— Vi o seu retrato no jornal. Quase não conheci. Você está tão diferente!

Sim — até há pouco o retrato era o seu rosto passado a limpo, mas já agora significava um engano. O melhor seria tirar nova fotografia, e bem melhorada, naturalmente.

Foi ao fotógrafo. Agora, pretendia ser o tipo intelectual. Uma blusa branca aberta no pescoço. Nada de joias.

O homem montara o estúdio num sótão, e o calor tirava palpitações dos objetos. Tudo fagulhava, e uma hostilidade parecia vir das coisas, como dos homens. O fotógrafo estava de mau humor:

— A senhora não se decide?

Ela queria uma fotografia clara. Nada de contrastes, — de luz e sombra endurecendo o rosto. Afinal, encontrou uma pequena loura sorrindo imparcialmente. Era aquilo. Só que queria o “toque” intelectual. A menina era glamourosa. Ela preferia dar a impressão de espiritual!

— O senhor está compreendendo?

— Ora, minha senhora, vá cuidar da sua profissão, que eu cuido da minha. Eu lá assinaria um retrato que não fosse a expressão verdadeira da pessoa?

Isso não a tranquilizou:

Disse que queria ficar parecida, porém, mais bonita:

— É para a imprensa!

Levou-a o fotógrafo para diante da máquina. Acendeu uma lâmpada no alto. Colocou dois holofotes de cada lado. O calor subiu ao ponto de fervura.

— Fique séria, minha senhora. Mas não carrancuda. E olhe natural.

— Como é que se pode olhar natural para a luz?

O suor descia da testa. O homem mexia na máquina, mudava a posição do braço da dama, ia e vinha. Olhava entortando a cabeça, com um jeito de periquito:

— Qual, a senhora não sabe ficar séria e natural. Sorria!

O modelo ensaiou o sorriso. Piscava. Os olhos ardiam. E o suor aparecia sob o nariz, como um bigode.

— Fique quieta! Agora! Pronto!

Dois dias depois foi ver o resultado: Sorria como uma zumbi e tinha o ar mais abobalhado do mundo. Estava jovem, sim. Parecia ter 27, agora. O homem retocara o suor, retocara os vincos de cada lado da boca. Era um riso sem pensamento, riso de cão amestrado.

Já agora o tempo refrescara, com rajadas frescas mandadas por graça de Dens, e sem anunciação do Observatório.

O homem estava de bom humor. A fotografada vacilava, diante daquela face lisa e redonda. 

O fotógrafo proclamou:

— Esta é uma fotografia das minhas. Com interpretação! Creia, minha senhora. Não teria — em toda a cidade — outro que lhe revelasse também a inteligência, como merece.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.