Fonte: Seleta de Dinah Silveira de Queiroz. Apresentação e notas de Bella Josef. Rio de Janeiro, José Olympio, INL, 1974, pp. 37-38.
Andei palmilhando um terreno onde as fundações de uma nova casa demarcam já sua futura posição, junto do lago de Brasília. No meio daquele marco geográfico, daquela mera indicação, a metade de um muro surgia falando que a casa já não estava tão somente em sonhos e planos. Ali já era o crepúsculo; as outras casas se espalhavam a alguma distância; já se viam luzes acesas e as águas do lago tomavam uma tonalidade de chumbo, pareciam inflar, subindo acima de seu nível natural, numa ilusão momentânea. Era quase roça, porque os cachorros da vizinhança ainda corriam atrás do nosso automóvel e, no entanto, já era também o século XXI porque dali se avistava a pujante ponte em construção e o perfil arrojado da cidade de Brasília, acendendo suas primeiras luzes. Fiquei olhando aquele pedaço de muro que um dia chegará ao teto, passeando pela delimitação daquela casa “mapeada”, mas que, lá para março estará concluída. Então, na moderna Brasília, existirá ali uma casa perfeitamente colonial, mas bem simples, no tipo de fazenda, com um pátio interno, em cujas colunas poderemos armar redes e no centro do qual haverá uma mesa de pedra, onde nas noites cálidas jantaremos ao ar livre. Vamos, pouco a pouco, levantando em imaginação, os contornos da casa, que será, vista da rua, modesta e até monacal, mas que se abrirá, a seu término, para a visão alegre do lago e terá, à noite, o deslumbrante panorama dos grandes prédios iluminados. Sim, não será uma casa rica, mas será uma casa. A parte chamada social terá seu piso de cerâmica brasileira; levará cal em todas as suas dependências e, dentro em breve, antes mesmo de que seja concluída, iremos ao Horto Florestal, para começar a fazer o jardim interior, e lá, ao longe, talvez plantaremos alguns eucaliptos, numa invenção de pequenino bosque. Apenas metade de um muro e todas as soluções para decoração já estão presentes em nossa ideia. Dentro dela, uma dúvida. Esta casa nos pertencerá realmente, teremos tempo de habitá-la, de conhecer a doçura de sua sombra, a calma da biblioteca, onde instalaremos todos os livros-órfãos que deixamos na Guanabara? Quem pode responder, nosso meio-muro? Nossa casa está vingando no chão de Brasília com a violência daquele pé de feijão da fábula.
Pouco tempo depois, as sombras vieram, o lago anulou-se na escuridão, o muro deixou de viver seu momento de importância. Tomamos o carro, voltamos para o apartamento, em cujo edifício só vivem diplomatas, isto é, só vivem aqueles que não sabem de sua vida depois do ano que vem.