Fonte: Quadrante 2, 4ª. ed., Editora do Autor, 1968, pp. 66-69.

A mulher reparou pela primeira vez naquela estranha tendência, quando, depois de ter com o marido voltado de um cinema, com a luz do quarto apagada, seu companheiro a puxou pelo braço ― pois que ela já ia mergulhando no sono:

― Estive pensando... Ele não teria sido preso, se agisse sozinho. Com aquele crânio ele não precisava de ninguém!...

― Mas... de quem você... está falando? ― perguntou a esposa entre dois bocejos.

― Do criminoso do filme, ora esta!

A mulher ficou esperta, de uma vez:

― Então a gente sobe para Petrópolis para tomar umas férias, dormir melhor, e você se preocupa com essa bobagem de fita de cinema!

Era, entretanto, apesar de parecer sem importância, o sinal daquela misteriosa atração que o bom homem agora mostrava pelo crime. Tendo tomado férias, pela primeira vez, depois de tantos anos de trabalho, não tinha em que gastar a energia do próprio pensamento. Dava-lhe um enjoo pelo jornal, até pelos romances que a mulher lhe punha nas mãos. Ficava banzando, as ideias se encadeando com furiosa lucidez, nas ruas petropolitanas. Um dia, um amigo o ouviu dizer, diante de uma vitrina de joias:

― Só nesta prateleira eu calculo que haja uns 900 mil cruzeiros. E o vidro... é bem fraco. Conheço bem a qualidade... É deixar um carro esperando, dar uma quebra rápida, e puxar tudo numa valise. Um homem sozinho pode assaltar perfeitamente isto aqui, sem correr nenhum perigo... Eu garanto ― como pode! 

O amigo se divertiu com a história.

― Felizmente, nós somos um povo ordeiro. Em qualquer lugar do mundo esta vitrina de joias teria melhor proteção!

Mas o homem imaginativo prosseguiu:

― Eu sou contra esse erro da maioria de assaltantes, que em geral operam em grupo... Mas no caso desta joalheria seria interessante que alguém telefonasse na hora exata, ocupando o único empregado... Porque eu já reparei: de manhã, aqui só fica um caixeiro! E com essa chuvinha miúda, quase não passa ninguém…

O amigo estranhou aquelas ideias do sempre pacato companheiro, mas resolveu não dar importância e pilheriou:

― Então, você queria... que eu ajudasse no assalto?... Em todo caso ― vamos andando... que é sempre bom tomar cautela com as conversas. Não está escrito na testa do sujeito se ele é ou não honesto.

Dias depois, o homem das imaginações voltou ao cinema com a mulher. À saída ele teve de dar um telefonema. O telefone ficava dentro da própria bilheteria, no pequeno quiosque de vidro fosco. Ao sair, ele contou à mulher:

― Sabe o que eu vi lá? Montes e montes de dinheiro! Notas e notas ― tudo dobradinho junto da caixa! Você não faz ideia do lucro de uma matinê de cinema! Um sujeito com um revólver no bolso pede para falar ao telefone e aponta para a moça da caixa, dizendo, baixo: “Passa já para cá isso tudo!” E é golpe garantido, porque mesmo da fila quem paga a sua entrada não pode ver o homem atrás da parede. É pegar tudo e ter forças nas pernas até o automóvel…

A mulher, desta vez, disse:

― Você quer saber duma coisa? Não venho mais com você ver esses filmes policiais. Não estou gostando nada desse seu modo de falar sobre assaltos. Até parece um menino bobo, com a sua mania!

Pela cidade embebida de rajadas finas ― uma chuvinha leve que convidava ao sonho ― o homem foi lançando sua opinião à esposa que o ouvia estarrecida:

― E eu nem faço, mesmo, questão de ver esses filmes absurdos, ingênuos, onde, invariavelmente, os roubos são descobertos e todos os crimes punidos. Quem lê jornal não ignora que há muita gente que escapa... gente esperta, que sabe onde tem o nariz, e estuda, antes, os seus golpes! No filme de hoje, bastaria que o criminoso matasse a moça, também, e…

― Minha Nossa Senhora ― invocou a mulher baixinho. As férias estariam enlouquecendo o marido?

Passaram os dois uns dias sem ir ao cinema, fazendo uns passeios vagarosos pela cidade. Todas as vezes em que o homem passava pelo Palácio, naqueles dias ocupado pelo presidente, ficava espiando, muito interessado. Uma vez, a senhora se cansou com aquela admiração pasmada do marido:

― Vamos embora! Que é que você está olhando? A essa hora nem o presidente sai…

Mas o marido respondeu obstinado e natural: 

― Estou estudando uma coisa. Todos os dias venho estudando isso…

E com a maior seriedade:

― Com um desses caminhões de carregar gasolina, todo de alumínio, fechado, e 20 homens bem equipados escondidos lá dentro... Eu parava aí adiante, e tomava esse palácio em cinco minutos! Uma coisa facílima! Facílima!

A senhora ficou trêmula. Olhou para o sentinela, ali bem junto. O soldado, imóvel, mas de olhos andando, acompanhava uma morena cor de jambo, felizmente.

Nesse mesmo dia a esposa foi procurar um médico. Contou-lhe a mania do marido:

― São as férias ― disse-lhe este.  ― As férias, às vezes, corrompem a imaginação. A senhora compreende: seu marido não tinha devaneios... Isso é uma espécie de bebedeira das ideias. Mas... passa. Desça já para o Rio, e faça com que ele retome seus hábitos.

No dia seguinte, o casal descia. E o marido, que sempre fora o mais fiel dos companheiros, se saiu com esta, quando na direção do carro, avistou o despenhadeiro:

― Você quer saber como um homem se livra de uma mulher aborrecida? É abrir devagar a porta, cair ao chão, e deixar que o carro despenque na curva, com ela... O viúvo que escapou... por milagre... se desembaraça assim da mulher ranzinza. E pode até casar com o broto que já tem de olho.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.