Fonte: Café da manhã, Olivé, [1969], pp. 104-105.
Foi Jorge Amado que me disse ao telefone:
Você deve voltar ao romance. Desde A muralha você não publicou outro... Você é romancista.
Então, tentei dizer qualquer coisa a respeito daquilo que eu chamo de fronteiras trancadas. O romancista, seria entre todos os autores, aquele que deveria sair, e por mais longo tempo, de dentro de si mesmo. Esquecer que é personagem, aventurar-se, identificar-se com outras figuras, ter a capacidade de suportar esse travesti por meses, viver uma loucura mansa, mas coerente, onde um painel de criaturas suas representam a obra de fé e de criação. Para os memorialistas, para os que fazem de sua literatura o desabafo das horas, ou até mesmo para os contistas, obrigados a uma convivência mínima com seus títeres, a dor humana, a chaga escondida talvez proporcione, quando escrevem, momentos de acalmia. Mas, para o romancista que não escreve sobre a sua vida, que se debruça sobre os problemas, as angústias alheias, aquele que recolhe outros risos e outras lágrimas que não as suas, a aventura de romper as próprias fronteiras trancadas parece a mais desesperada, a mais ousada entre todas as outras, a mais louca.
Em vão ele quererá sentir, cerrando os olhos, as vidas que sua pena traçava e retinha. De súbito, ele se viu cercado por um abismo aparentemente intransponível. Suas criaturas esboçadas se encontram do outro lado. Ele as entrevê, em seu limbo, senhor das vidas que principiaram a tomar forma e, no entanto, toda a paixão que se ligava àquelas criações se extinguiu bruscamente.
Seria possível explicar a alguém o mecanismo desse triste divórcio? É que a dor humana como que cria até uma linguagem diferente. Os que sofrem, os que sentem em solidão, já não têm ânimo para a identificação com as personagens inventadas, não sabem mais falar com elas. Eles vivem agora. Vivem, como jamais viveram em tal intensidade. Mas são segregados em seu desespero e tudo que até ontem lhes parecia belo e nobre perdeu a razão de ser, virou mentira descoberta. Entre a romancista e as suas personagens as fronteiras foram trancadas. Até quando? Até quando saberei novamente como se ri, ou como se odeia, ou como se pode ser ao mesmo tempo uma Daniela, estúpida e inocente, um Bento, aventureiro, uma Beleguina, supersticiosa e cômica, uma Dona Comba, paixão de todos, gente em plena turbulência, de Os invasores, de que me separei, confinada em mim mesma?
Há quem diga, com imensa generosidade, que a escritora sairá de sua luta contra o sofrimento, mais depurada, mais autêntica. Não creio.
Agora sei que a dor é silêncio. É silêncio fechado, é muro intransponível. E, dentro deste silêncio, cercada pelas barreiras, espero um sinal, um raio de sol, uma promessa de comunicação, enfim, com o mundo distante e perdido.