Fonte: Café da manhã, Olivé, [1969], pp. 26-27.

Ontem, ia entrando num cinema, quando ouvi uma acalorada discussão. Voltei-me. Era um menino de uns dez anos e um senhor, lá pelos 60. Compreendi que o homem não queria ver aquele filme e optava por outro programa. Mas o menino, com grave autoridade, declarou: 

― Acho bom entrarmos aqui mesmo, porque nós já perdemos o horário. O senhor vê a sua fita na outra semana. Ela vai continuar.

― Continua, nada ― disse o homem amuado, como uma velha criança que sabe que está sendo enganada e derruba o beiço.

O menino era quem fazia tudo: entrou na fila, comprou as entradas, enquanto o senhor ficava de lado, bastante nervoso, estalando os dedos.

Logo vi que eram avô e neto; que este ser de dez anos conduzia o outro de 60 com tal rigor que chegava a ponto de não lhe permitir ver o filme desejado. A criança de 60 acompanhou o adulto de dez, com um ressentimento momentâneo, uma dessas irritações entre pessoas que se querem muito. E eu me lembrei de um caso aparentado com este e que ocorreu, há apenas dois meses, no Zoo de Berlim.

Mas ali a história era maravilhosa ― era a de um menino bem menor do que o garoto que controlava o cinema do avô. O neto mostrava o aquário para o velho, pois o avô era cego. Ele, o pequenino, descrevia tudo, com uma grande excitação; desde os tubarões mortíferos e assustadores até as engraçadas tartarugas e o velho se assombrava com ele, e se ria com ele. Depois, ao ar livre, pegando a mão do avô, o menino mostrou cabritos monteses e ambos riram alto, numa alegria partilhada em delícia. Mais adiante, pararam na pequena comunidade dos macacos e, diante da descrição do neto, o senhor alemão gargalhou a ponto de chorar pelos olhos vazados ― sabe Deus se pela guerra.

Eram duas crianças como essas duas do cinema de Copacabana, com a diferença de que no caso do Zoo de Berlim Ocidental aquilo era tão triste ― o neto e o avô cego ― que ficou como uma memória pungente dentro de mim, uma ferida apenas encoberta.

O menino alemão ― via-se bem ― acostumado a tomar conta do avô, bem se estava adiantando mais do que as outras crianças, sem essa difícil comunicação que os pequenos têm quando neles se aglomeram palavras atropeladas. Na ânsia de descrever, o guia do avô cego já havia superado a etapa da linguagem engrolada. Era um pequenino professor. E, vindo do neto, o conhecimento de muitas coisas deveria ser radioso naquela escuridão do avô.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.