Da importância de morar em São Vicente

 

Fonte: Café da manhã, Olivé, [1969], pp. 80-82.

O moço me contou a sua história:

― Eu havia ficado com a cena teimando em minha memória. Era um amor de criança, mas tão profundo! Ela e eu morávamos, durante certas férias, em chalés alugados na praia, em São Vicente. Saíamos sempre separados com nossos pais, mas havia um fio quase visível que me ligava perdidamente a seus grandes olhos cinzentos. Na praia nós nos olhávamos desesperadamente. E apesar daquela ânsia, é curioso, parece que ninguém reparava. Existia, porém, uma hora em que aquele amor, que só se contentava em olhar, tinha o seu êxtase. À tarde, sempre às quatro horas, ela abria a janela da frente, e surgia como uma pequena Julieta. Parece que ainda a vejo, um pouco para dentro da sala, sombras no rosto, mas com os olhos em plena luz, tão claros! Caíam-lhe pelo colo as tranças louras, de um louro cinzento. E tinha um jeito assustado e medroso. A todo o momento espiava para trás, receosa. Mas, quando sua vista voltava para mim, que delícia, em que céu eu me punha! Um dia, quando ―  eu na janela de cá, ela na janela vizinha ―  nós nos entregávamos àquela contemplação deliciosa, aconteceu algo de incrível. Uma longa mão de homem, maciça e peluda, agarrou minha namorada e a puxou como quem tira um artista do palco. Depois, horrorizado, eu vi surgir a face assustadora do pai da menina. Ele me dirigia um olhar de reprovação, dizia qualquer coisa rosnando, entre dentes e fechava a janela. A janela fechada! Durante quantos dias, de coração apertado, eu olhei aflito para o pequenino quadro, esperando em vão, que a menina de meus sonhos ali aparecesse! Mas nunca mais voltou. E, quando eu a via na praia, ela olhava triste para outro lado.

Nunca esqueci aquele instante em que minha doce amiguinha foi violentamente roubada à minha encantadora admiração. Dias depois, as férias terminaram. E aquela grande mágoa eu a guardei. Durante noites se repetia a cena odiosa. O vulto querido puxado pela mão enorme e, depois, o rosto furioso do pai. Cada vez que eu evocava a janela batendo, parecia que a pancada era sobre meu coração. Como eu sentia dor!

O tempo passou, os anos desfilaram. Um dia, já me havia formado em direito, vi um casal entrando num cinema. Senti um choque. Mas era a minha namorada de infância. Os cabelos haviam escurecido, é verdade, e estavam cortados. Mas os olhos eram os mesmos. Pareciam reter toda a luz e brilhavam, mais claros que o rosto. Olhavam-me, aqueles dois olhos com seu fascínio do passado, mas muito naturais, de passagem. Ela me vira, mas não me reconhecera!

Muitas vezes depois eu a encontrei. Nunca estava só. Ora vinha com amigas, ora aparecia com o mesmo rapaz com que eu a encontrara no cinema. Andei pesquisando, e descobri seu endereço. Já estava casada. Rondei sua casa e a vi, algumas vezes, entrando ou saindo de lá. Parecia tão feliz! Desisti de procurá-la, fiquei triste por umas semanas, depois... não pensei mais nela. Houve uma longa interrupção entre nossos encontros. Só voltei a vê-la, muito, muito tempo depois, num dia de finados. Estava magrinha, diminuíra, parecia a menina que eu amara nas minhas férias em São Vicente. Colocava flores numa sepultura. Quando saiu dali, me precipitei para ler a inscrição no túmulo. Era, como eu esperava, o nome do marido! Como me senti feliz! Todo o cemitério me pareceu apenas um jardim alegre! Nunca a morte de alguém deu tanto... prazer!

Então, dias depois, ganhei coragem e me apresentei, quando a jovem viúva saía da missa de domingo. Algum tempo depois eu me declarei:

―  Não sabe há quantos anos eu lhe quero bem!

―  Você pensa que eu não notava a sua perseguição? 

Ela riu e me levou ao paraíso com seu riso. Ficamos noivos... e um dia, eu lhe disse:

―  Agora que você está magrinha, parece a mesma menina de São Vicente!

―  Mas... que menina de São Vicente?

―  Você, ora, você mesma, naquelas férias! Então não se lembra mais?

―  Mas... se eu nunca estive em São Vicente! 

―  Você não se recorda... mas será possível? Olhe, tinha uns 13 anos!

Então ela proferiu uma sentença irrecorrível: 

―  Passei toda a minha vida ―  até o casamento no Recife... Você está enganado.

Era inacreditável! Eu me havia enganado! A moça que eu perseguia com o meu amor não era a menina dos meus sonhos! Mas como pudera acontecer!... tal engano?

A verdade é que acontecera. Fiquei aterrado.

―  Mas você faz tanta questão que eu tenha estado em São Vicente, assim?

Quem me contou essa narrativa está em dificuldades. Depois que verificou o engano já não mais tem amor pela viuvinha. Quer romper o noivado, sofre, vive aflitíssimo.

Quando acabou de narrar seu caso eu lhe respondi:

―  Meu amigo, você acha que a sua história é muito original? Ela é a mais velha história do mundo. Você apenas descobriu que esta não é a mesma mulher. Outros não descobrem nunca. Em cada nova criatura amada há sempre a eterna visão de antigo amor, que é como o altar: mudam a Santa, mas ele é sempre igual.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.