Fonte: Jornal do Brasil, de 27-28/02/1972.

Conforme prometera, o pintor de paredes voltou no dia seguinte com o irmão, técnico em consertos de geladeira. O artista sentou-se com eles na sala e ordenou que Zefa, a arrumadeira, servisse um cafezinho.

– Como então – disse o artista, dirigindo-se ao irmão do pintor, um mulato de uns 30 anos com ar de passista de escola de samba. – Como então o senhor entra na minha casa, leva o motor da minha geladeira e nunca mais dá notícias…

– Levei para consertar, e a sua arrumadeira consentiu.

– Bom... Não quero discutir. Está bem. Levou com o consentimento da arrumadeira. Mas até agora não trouxe de volta, não é?

– Só posso trazer de volta se o senhor devolver o cartão que lhe dei.

– Mas meu amigo, eu sou um homem muito ocupado e vivo recebendo papeis. Seu cartão já desapareceu no tumulto deste apartamento de solteiro. Além do mais, como diria o poeta, o que é um cartão? Não é um braço, nem uma perna, nem documento... Se eu mandasse imprimir um cartão com o meu nome, acrescentando “presidente da república”, nem por isso iriam acreditar que eu fosse presidente da república... Um cartão de visitas não vale nada…

– Sinto muito – falou o mulato – mas só entrego o motor em troca do cartão.

O artista suspirou. Naqueles dias, outro artista, igualmente famoso, andava tendo seu nome na página policial dos jornais, por ter tomado providências brutais em relação a um indivíduo humilde, igual ao técnico que naquele instante tomava cafezinho. O artista ponderou:

– Quero que você se lembre de que sou uma celebridade da televisão. Tenho amigos numerosos e poderosos. Posso criar problemas para você. Mas não quero criar problemas. Vamos fazer o seguinte: hoje é terça-feira; até sábado, espero pelo diabo do motor. Depois de sábado, não me responsabilizo mais. Você, com essa cara de rapaz inteligente, deve saber muito bem o que significa apropriação indébita, para usar uma expressão suave…

O outro apenas se levantou e disse:

– Primeiro o senhor vai ter que achar o meu cartão.

– Então, aguente as consequências – ameaçou o artista.

O técnico mulato e seu irmão foram embora. Passaram-se três meses, quatro, e nada de ser resolvida a questão. De vez em quando o técnico português avistava o artista na rua e inquiria:

– Então? Já botaram o motor na geladeira?

– Ainda não dizia o artista, constrangido. – Mas quando trouxerem o motor de volta eu chamo o senhor para consertar…

O caso foi discutido nos corredores de uma emissora de televisão e nos bares frequentados pelo artista. Um amigo dele, ligado ao pessoal da polícia, fez a seguinte sugestão:

– Conheço um cara durão, leão de chácara num inferninho, que quebra esse galho para você. É só conseguir o endereço do malandro.

– Pois eu vou conseguir – decidiu o artista. Chegou em casa, espalhou no chão a papelada que estava em cima do sofá – cartas de fãs, retratos autografados do artista, recibos de luz e gás, recortes de revistas e jornais – e, tudo espalhado no chão, procurou o maldito cartão de visitas.

– Achei! – gritou ele de repente. Correu a procurar o tal amigo e lhe deu o cartão, com nome e endereço do técnico.

– Pode deixar comigo – disse o amigo. – Este caso vai ser resolvido ainda esta semana. 

– Mas não se esqueça de que não quero escândalo – recomendou o artista.

Encontraram-se os dois alguns dias mais tarde e o artista indagou:

– Como é? Encontraram o homem?

– Encontramos – falou o outro, com expressão desanimada. O meu amigo leão de  chácara deu nele para valer. Mas ele tanto repetiu que sua geladeira não tinha motor, que acabamos descobrindo o lamentável equívoco. Você nos deu o cartão de visitas do português....

Até hoje a geladeira do artista não funciona, e ao chegar em casa ou sair à rua ele dá uma volta imensa no quarteirão, porque não gostaria de rever o pobre e honrado lusitano…

jose-carlos-oliveira