Penso que a discussão passional não leva a coisa alguma. Quando acordo na máquina de morar e abro a máquina que faz chover e me banho nessa água doméstica, sinto que a cidade é obra minha, nossa, e me orgulho de ser metropolitano. Desço ao térreo dentro da máquina que sobe e desce e com um assovio chamo a máquina feita para correr em meu lugar. Acendo o meu cigarro com a máquina de fazer fogo, mato a sede na máquina de beber, viajo nas asas da máquina que transmite música, e nessa mesma máquina entro em sintonia com a cidade e o mundo. Escrevo na máquina de escrever e me informo de tudo o que acontece na máquina de papel bolada pelo velho Gutemberg. Quando escurece, ligo a máquina que produz luz, e quando faz calor, ligo a máquina que fabrica frio. Se tenho saudades da amada, localizo-a através da máquina que leva a minha voz para onde eu quero falar. Em cada gesto desses, repetido dezenas de vezes ao longo do dia, sinto a presença dos membros da minha comunidade – a presença solidária do operário, do artista, do engenheiro, do técnico, do industrial e do comerciante que colocaram tais milagres à nossa disposição comum.
Quando me canso de aspirar fumaça e poeira, bem como de escutar barulhos infernais em toda parte e a toda hora, é ainda à máquina que recorro, sendo maquinista geralmente essa máquina lenta e sábia que Deus fez para assegurar a permanência da boa música em nossos ouvidos: entro no carro de Tom Jobim, que tem ar refrigerado e vidraça panorâmica, e fazemos uma sinuosa viagem ao longo dos abismos que têm por base o grande mar, e adentramos a floresta como se dizia antigamente, e desligamos o ar refrigerado e vamos subindo pelas veredas sombrias, entre árvores de imensos troncos. Lá vamos nós, é ainda à cidade que devemos agradecer a construção e preservação desta monumental Floresta da Tijuca. (Quando quero convencer alguém de que é justo pagar imposto, digo-lhe: “Pode dar, o dinheiro será bem empregado. Uma parte é para o gari limpar a areia da praia, e o que sobra eles empregam na conservação das zonas verdes. Podes crer”.)
Há silêncio, há oxigênio, há flores silvestres, há namorados de mãos dadas nos bosques, há uma orquestração dissonante de pássaros (uma tagarelice babélica), sem falar no escândalo roxo das quaresmeiras que nos surpreende em algumas curvas, tudo isso na Floresta da Tijuca, a dez minutos de automóvel do Antonio’s. E a ligação é feita sobre prodigiosas invenções da engenharia brasileira: o próprio automóvel, aliás, entra nessa comunicação do urbano com bravio.
Os detratores da cidade são aqueles que se aborrecem quando escutam os latidos do cachorro do vizinho. Não querem propriamente viver no mato ou na roça, coisa que só depende deles próprios. O que querem é aquele mato e aquela roça que sonharam nas noites de São João: uma fantasia. São na verdade caipiras, isto é, retrógrados, vítimas de melancolia. Querem o que passou e não volta, e não o que, tendo passado, pode voltar. Quando ladra o cachorro do vizinho, resmungam porque acordaram de um sono merecido, mas não se lembram de que na roça os cães ladram quando bem entendem e os galos nos acordam naquele finzinho de sono que é o melhor de todos... Sem falar nos grilos, nos mosquitos, nas doenças de roça, nas mordidas de cobra, na mesquinhez moral dos pequenos povoados…
Isto, quanto à cidade. Em seguida falaremos do campo.