Fonte: A intensa palavra: crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969. Rio de Janeiro, Record, 2024, pp. 264-265.

Publicada, originalmente, no Correio da Manhã, de 6/09/1964.

(Carta sem endereço, encontrada na cadeira de um bar.)

“Se as tarifas postais dobrarem, amor, dobrarei as efusões e te mandarei dois mil carinhos em lugar de mil, e dobrarei as palavras também, escrevendo beijo-beijo ou beibeijojo, como preferires ou for de minha fantasia no instante. Se os selos continuarem a aparecer com cores erradas e citações latinas pedindo remendo, desenharei modelos novos com a tua só imagem na tonalidade mais que perfeita que nem o arco-íris nem Renoir foram capazes de reproduzir, e usarei o alfabeto ideal de uma exclusiva linguagem superior a declinações, pois todas as palavras e letras se resumirão no teu Nome; e não estaria fora de minhas cogitações fazer selos de música, timbres de Haydn, para nossa correspondência. Se o monopólio do papel chegar a um ponto em que cada folha de bloco represente o valor da exportação de minério durante um ano, minhas cartas ganharão a diafaneidade do ar, e na brisa receberás estas falinhas que com isso ganharão em leveza múrmura. Se a carne desaparecer definitivamente dos açougues e tudo mais de nutrir com ela se for, comerei folhas de árvores, começando pelas de verde mais claro e terminando a refeição com o flã ardente das amendoeiras vermelhas; mas se as árvores também entrarem em locaute, comerei a lembrança das folhas e não deixarei de pensar em planturosos banquetes, piqueniques e lanches aeronavais em tua amada companhia, que afinal de contas é meu único alimento verdadeiro, e quando estás distante não adianta que os supermercados deste mundo estejam abarrotados e de portas abertas sem caixa registradora e borboleta para quem quiser servir-se e levar. Se for vitoriosa a tese da coincidência de mandatos, para a qual existem oito fórmulas distintas e nenhuma coincidente com outra, levantarei a grande tese da coincidência dos corações amorosos, e todos os governadores, senadores e deputados eleitos no mesmo minuto para em outro igual se retirarem após efêmera passagem, proclamarão que amor assim, de corações assim, jamais poderá ter fim, e será instituída a eternidade do mandato que o Amor nos conferiu. Se as concessionárias forem compradas e seus serviços e equipamentos passarem ao domínio da nação, de que somos parte sensível, pedirei ao Marechal que me confie duas ou três empresas para que eu instale um serviço telefônico direto entre a tua e a minha habitação, e plante uma fieira de luzes de mercúrio por toda a extensão do caminho, embora eu para meu bem passear saiba que essas lâmpadas se apagarão encabuladas quando passar a luz maior de teus olhos; e também aplicarei a energia em quinhentas fábricas de brinquedos para os frutos que resultarem de nosso amor, não falando nas indústrias de produtos de beleza a serem produzidos para doação às demais mulheres da Terra, já que tu não precisas deles e sei que és generosa com tuas companheiras necessitadas de artifício. E se mais houver mais proverei. Na terra, no mar, no ar, no fogo, na Constituição ou fora dela, beijo-te, amor".

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.