Fonte: A intensa palavra: crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969. Rio de Janeiro, Record, 2024, pp. 131-132.

Publicada, originalmente, no Correio da Manhã, de 12/03/1959.

Mando daqui meu aplauso ao dr. promotor de Justiça da 4ª Vara Criminal, que, contrariando a índole punitiva de sua classe, se recusou a contribuir para que um casal fosse parar na cadeia pelo simples fato de estar conversando em casa, de madrugada, em trajes de dormir. Do ato desse representante do Ministério Público se conclui afortunadamente que em nosso país conversar ainda não é crime e nem sequer contravenção, ao contrário do que pensa a polícia; e a polícia pensa tão estritamente que se lhe afigura contravenção até mesmo o colóquio na intimidade do lar, a horas mortas, com a indumentária leve que o local e o momento aconselham e que o calor torna imperativa.

Longe de ser acusado, o casal merecia louvor e prêmio, pois, sem o saber, estava restaurando o casamento em uma de suas características essenciais e mais belas, qual seja o diálogo; um diálogo infindável, não apenas pela noite afora, mas pela vida afora e, em certo sentido, além dos tempos; confrontação contínua de duas partes irmãs, que dessa maneira se identificam e se reúnem, restabelecendo aquele mito grego segundo o qual no princípio os seres humanos eram completos e bivalentes, e só mais tarde se deu a lamentável separação.

O que impressiona antes de tudo nos casais contemporâneos é o silêncio a que eles se votaram, e que só se desfaz diante de uma terceira pessoa, quando então os dois começam a falar, não entre si, mas com ela. E conversavam tanto um com o outro quando namorados e noivos! Casou? Calou a boca. Se a gente encontra na rua um homem e uma mulher caminhando juntos com ar de procissão de enterro ou de indiferença total, não é difícil adivinhar que se trata de marido e de esposa, às vezes até se estimando, mas, ao mesmo tempo, acostumados e desacostumados ao convívio. E não é porque lhes falte assunto, a vida é um assunto contínuo, a própria relação entre eles uma fábrica de assuntos, mas não querem botá-la para funcionar, a menos que prefiram o funcionamento alternado, cada um comentando com quem melhor lhe pareça a matéria numerosa e variada dos dias.

Por isso, o casal que é quase processado porque conversava noite alta, no quarto, faz jus à nossa admiração. É um pobre casal que mora em habitação coletiva, num sobrado carcomido de Botafogo. Imagino que se percam de vista ao amanhecer; à noite, reencontrando-se, têm tanta coisa para se contar que a conversa – o oaristo, é o termo próprio – se prolonga por horas e horas e não se esgota; e conversando e rindo, rindo e conversando, pois isto não exclui aquilo, antes o provoca, os dois, em suas roupas despretensiosas, me parecem sacerdotes de uma religião perdida por incúria dos fiéis, mas que promissoramente renasce no interior de uma casa de cômodos.

Dir-se-á – e foi o que disse a polícia – que os demais moradores da casa de cômodos não gostam de ouvir conversa alheia, e deixam de dormir por causa da charla matrimonial. Tenho pena deles, não porque percam o sono, mas porque, abominando a conversação, esse prazer que, antes de ser socrático, já era um traço da natureza humana, a repelem até nos vizinhos, e querem implantar a mudez como norma ideal de vida. Coitados, precisam de uma cura de readaptação à palavra, à doce palavra da conversa íntima, tecida de pensamentos, notícias, anedotas, delicadezas e deliciosas bobagens.

E à polícia, tão empenhada em velar pela tranquilidade noturna, eu pediria que tomasse menos nota dos barulhos internos e mais dos externos. Numa terra em que há uma noite por semana em que ninguém consegue tirar uma pestana – a noite de preparação da feira livre –, é uma pena que ela fique de ouvido colado às portas para pegar conversa de marido e mulher – a não ser, como disse, que fosse para homenagear os conversadores, oferecendo-lhes violetas e a ordem do legítimo Cruzeiro do Sul.

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.