Fonte: A intensa palavra: crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969. Rio de Janeiro, Record, 2024, pp. 142-143.
Publicada, originalmente, no Correio da Manhã, de 20/08/1959.
Está o homem quieto em sua casa, e a moça jornalista lhe telefona perguntando o que é que ele pensa sobre a moda dos joelhos de fora. Em primeiro lugar, não penso nada; em segundo lugar, se pensasse, não o diria de graça à repórter, embora simpática. Somos todos pensadores profissionais, e cada um de nossos pensamentos, fulgurantes ou mínimos, se destina a encher meio palmo de coluna, sem o quê, nosso obscuro nome passará a figurar em outra seção do jornal, a de títulos protestados. Refletindo melhor, esse joelho me serve. Sento-me e contemplo-o.
Não acha o joelho muito feio para ser mostrado? – é a própria moça da pergunta, que o insinua. Não acho, não, senhora. É uma peça como outra qualquer do corpo humano, com sua funcionalidade e portanto sua justificação. Se fosse desnecessário, não existiria, e com existir ganha um sentido e mesmo certa forma de beleza – admitindo-se que o corpo humano seja belo, o que é uma opinião nossa sobre nós mesmos.
Dentro da condição de mamíferos bem pouco aperfeiçoados, como atestam os naturalistas – um que tenho aqui à mão lembra que não nos distinguimos na classe, nem pelo tamanho nem pela força muscular, nem pela acuidade dos sentidos nem pela proteção da pele -, e, na qualidade de parentes próximos do antropoide, não temos motivo para falar mal do joelho. Ele resolveu um complicado problema de articulação; é pouco móvel, sem dúvida, mas sem essa dobradiça modesta, ainda não de todo apurada, manteríamos sempre posições tão incômodas que nem é bom pensar nelas.
A situação de primo pobre que o joelho ocupa com relação ao corpo é das mais injustas. Poetas figurativos cantam (ou cantavam) cabeleira, rosto, seios, ventre, coxas, pernas, pés e outras particulares ocorrências, detendo-se amorosamente em cada uma delas, conforme o gosto, mas entre a coxa e a perna, olham depressa ou com enfado, disfarçam e passam adiante. Não há joelhos em poesia. Há no máximo “giolhos”, como os de dona Guiomar, mencionados pelo místico de Mariana . Os homens se ajoelham, sim, diante de Deus ou da mulher amada, mas sem
apreço pela armadura óssea que tornou viável esse ato de adoração – que contribuiu para a espiritualização e a poetização do bicho homem.
Vêm agora os costureiros franceses e lançam a moda do joelho exposto, evidente, batatal, com a barra do vestido a servir-lhe de guarda-chuva. Dão-lhe uma chance, ao pobre e omitido joelho, que na semostração geral da vida não tinha vez. Convenho que não seja moda para todas as mulheres, mas qual o foi algum dia?
Os seres humanos estão apenas começando a descobrir a realidade de sua estrutura física. A noção que se tinha do corpo era a mais vaga e confusa possível, sob o peso de preconceitos e proibições éticas. Nudez ficou sendo pecado e ignomínia; a praia e as piscinas vão trabalhando para demonstrar a falta de conteúdo desse conceito. Não é necessário andar nu para fazer a demonstração total disso, nem a moda jamais chegará a esse ponto, sendo tanto uma arte de descobrir como de encobrir. Mas, através da fantasia dos costureiros, integramos um pouco mais o corpo humano no quadro natural da vida, e o compreendemos melhor, sem malícia e perversidade. É a vez do joelho, da vulnerável rótula, do implícito menisco. Que os vestidos novos saibam valorizá-los.