Fonte: A intensa palavra: crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969. Rio de Janeiro, Record, 2024, pp. 284-285.
Publicada, originalmente, no Correio da Manhã, de 26/05/1965.
De repente, a televisão comunicou o telegrama de Londres:
“Procurem o tesouro entre as areias da praia. Talvez esteja lá. Milhares de libras roubadas aqui foram escondidas em Copacabana, diante de um hotel”. Entreolhamo-nos todos. A esta hora da noite, bem instalados no apartamento, esquecidas as canseiras do dia, a digestão a fazer-se placidamente, por que vem perturbar-nos a ideia de um tesouro? Se saíssemos de mansinho e fôssemos inspecionar o local... Oh, mera curiosidade. Para falar franco: dispostos a cavar. Mas chove. Chove sempre em cima de um tesouro. Não temos pás em casa. Que falta de senso não incluir entre os pertences domésticos uma pá, mesmo uma picareta, para essas emergências. Agora é tarde, comércio fechado. Cavaremos com as mãos, arrebentaremos as unhas, mas esse tesouro não pode ficar oculto ali adiante, em frente ao mar, de costas para uma cobiça que não suspeitávamos em nós e, bastou a televisão falar aquilo, estourou.
Porque esse tesouro é nosso, do nosso bairro, e não permitiremos que do Flamengo, do Centro, da Zona Norte venham disputá-lo. Como se não bastasse o número excessivo de moradores de Copacabana, todos com direito à pesquisa, em igualdade de condições. Igualdade? Talvez os da avenida Atlântica se considerem mais habilitados do que os outros, é um ponto a discutir. Em sã consciência, o mais democrático será estabelecer condições gerais para todos os habitantes do bairro, nacionais e estrangeiros, não, estrangeiros não, que provem residir aqui no mínimo há cinco anos... Impossível a verificação em pouco tempo, o tesouro já revelado não espera, deixemos de puerilidades.
Quantos somos nesta casa? Seis, fora o nosso garotinho de dois anos. Então divide-se por seis. Não. O velho não pode expor-se a esta chuva nem prestaria serviço como escavador. Ficará em casa, sua parte será menor.
Pensando bem, não terá parte nenhuma. A velha muito menos. Esses dois não são de procurar tesouro, passaram a vida cozinhando sonhos modestos; que fariam com tanto dinheiro se não podem sequer guardá-lo, tão esquecidos andam? A cunhada, professora incansável, será que precisa disso? Tão habituada a seu destino, havia de ser cômico vê-la de uma hora para outra rodeada de libras e pretendentes. Poupemos-lhe esta situação ridícula. O primo que alugou nosso quarto não é bem da família, primo longe, estudante vadio, não merece entrar no bolo. Vai ser difícil despistá-lo, mas se for o caso usaremos de energia. Restamos nós dois, e nosso menino, pelo qual faremos todos os sacrifícios, inclusive o de disputar a milhares e milhares de concorrentes, debaixo d’água, esse tesouro roubado que veio nos tirar o sono.
Claro, é o pensamento do futuro de nosso filho, neste mundo bárbaro de bombas, que nos leva a traçar este plano de luta enquanto a noite avança, minha Nossa Senhora das Graças, minha Santa Rita dos Impossíveis, será que chegaremos antes? Não podemos arrebatar o tesouro a tanta gente que escutou a notícia. Somos uma pobre pequena família sem elementos de intimidação. O jeito é distrair a atenção coletiva, lançando o pânico na população, telefonar a jornais, rádios e TVs, avisando que uma brigada de choque de marcianos acaba de descer no Arpoador, abandonem a orla marítima se quiserem ser salvos! Miséria: todos os telefones ocupados. Do terraço veem-se todos os vizinhos discando febrilmente, em vão. Tiveram todos a mesma ideia? Não há nada a fazer antes que amanheça? Tudo está perdido? Então esperemos o próximo tesouro.