Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 28/06/1974
Quatro por trinta — (1)
● Esta é a primeira de quatro anotações feitas durante 30 dias de férias em amargura. Tratam de assuntos objetivos, mas seriam antes projeções de minhas dificuldades atuais.
Cansado da vida que tenho levado, que não me leva a nada, decido fugir da noite, da festa, de todos esses dramas que caem sistematicamente em minhas mãos e com os quais nada posso fazer, pois não sou psicólogo, nem padre, além do que a neurose urbana, assim manifestada, é quase sempre uma ficção elaborada pelos que se querem neuróticos. Tenho observado que na Zona Sul se considera chique alguém se declarar “perdidão”: entretanto, todas as vezes (e não têm sido poucas) em que me disponho a ir ao fundo do problema, encontro só angustiazinhas, que se curam com um bom sono e uma boa chuveirada.
Entro em férias. Não tenho destino. É duro sair do ambiente que te faz mal; paradoxalmente, você tem a impressão de estar perdendo alguma coisa. Dois dias, três, de indecisão, na imobilidade daquele vaqueiro descrito nos Sertões: súbito, num salto, engancho-me no cavalo do acaso e me embrenho na aventura. Quer dizer: entro num táxi e contrato uma corrida para Cabo Frio. Sei que não há sol, e sim um vento gelado, antipático, dia e noite, nesta época do ano em Cabo Frio. Mas é para onde vou. Na Praça Mauá, o chofer que me traz do Leblon, desiste: só agora se lembrou de que tem compromissos no Rio. Mas me transborda para outro carro, recomendando-me ao colega. Lá vou eu, no entardecer, atravessando pela primeira vez a ponte Rio-Niterói, que é linda e sem fim. Já nas estradas do estado do Rio me sinto em casa: em minha alma de viajante, a fusão está consumada, o que me dá uma sensação de bem-estar: andei, andei, e não saí do lugar.
A certa altura, um pneu fura. Paramos numa oficina, os mecânicos trabalham, finalmente está tudo em ordem e ganhamos outra vez a estrada. Mas o chofer de táxi é gente imprevisível. Após anos e anos de observação, sou capaz de perceber num relance qual a espécie de homem que vai ao volante: se é feliz no casamento, se tem filhos, se o veículo lhe pertence, se a profissão solitária melhorou ou piorou o seu caráter. A maioria deles não se apercebe de estar conduzindo uma pessoa, presume que não passamos de um embrulho. Assim, você grita:
— Táxi!
Ele encosta. Você entra. Ele não te olha. Você diz:
— Bom dia.
Ele não responde.
— Vamos a tal lugar — diz você, e o motorista põe o carro em movimento, automaticamente. Quase todo chofer de táxi está pensando em outra coisa, nunca na natureza de sua atividade. Chegando ao fim da corrida, você paga, dando uma boa gorjeta (eles próprios, através do Sindicato de classe, proclamaram recentemente que o carioca é passageiro generoso), abre a porta, e ao saltar:
— Obrigado, amigo.
O chofer pisa no acelerador, sem dizer palavra. Por isso é que eles são assaltados com tanta frequência: se algum deles prestasse atenção ao passageiro que pretende assaltá-lo na madrugada, haveria uma permuta de adrenalina que colocaria a futura vítima em estado de alerta. Mas se ele menospreza o passageiro honesto, considerando-o um simples boneco apressado, para não dizer uma abstração aborrecida, a consequência é que sua curiosidade se atrofia e seu instinto de conservação se amortece. Devia haver obrigatoriamente um curso de relações humanas para os motoristas de praça.
Vejam este que me conduz: estamos em lugar nenhum, entre fileiras de casuarinas, a igual distância de Niterói e de Cabo Frio. E justamente agora ele começa a se queixar que é muito longe, começa a insinuar que está me fazendo um favor de pai para filho... Antes, porém, de se animar a formular com clareza o seu propósito, já mais que evidente, de me extorquir algum dinheiro por fora, o meu Anjo da Guarda suscita a explosão do para-brisa. Acredite quem quiser: o para-brisa explode, ficando reduzido a uma infinidade de estilhaços. O carro foi lançado no acostamento e a viagem terminou.
Calmamente, pego minha mala e minha máquina de escrever, faço um simples gesto sobre o asfalto e um ônibus me recolhe. Ao preço de nove cruzeiros, no princípio da noite estou em Cabo Frio. Enquanto o pobre chofer de táxi ficava no meio da rua, com suas más intenções...