RIO DE JANEIRO – A sociedade de massa não tem rosto. Autoritária, a massificação não tem rosto, nem voz. Encapotada no sufoco do triste manto totalitário, uma nação não tem rosto, nem voz, nem alma. É tudo cinza, como a paz do cemitério. A alma não morre, nem emigra. Vai para as catacumbas. E o povo tem aquele passo tardo e medroso de um rebanho a caminho do matadouro. Um estado policial eficiente, como houve tantos neste século, transforma o povo em gado.
Em movimento, enraivecida na hora do levante, heroica diante do perigo, correndo o risco de um destino que mal adivinha, a multidão não só tem, como mostra a própria cara. Não é preciso ser nenhum Cecil B. DeMille para ter surpreendido a cara do povo, como protagonista nos recentes acontecimentos da União Soviética. Lá estava, em massa, vociferante, sobressaltado, o povo que até outro dia não tinha voz, nem cara. Como um só homem: o povo. Uma só determinação.
Viu-se o que pode fazer uma liderança, se exprime a vontade universal no exato momento que já nasce histórico. Na vertente de um destino que num átimo toca e move a alma profunda de um povo, tudo é possível – até o milagre. Sobretudo o milagre, que surge assim de surpresa e, como todo nascimento, é fruto de uma paciente gestação. Gerado no silêncio e no segredo, como o amor que não se exibe, mas se esconde. Como as grandes paixões, que se nutrem de si mesmas, no fundo esconso de suas entranhas.
O povo nas ruas, vimos todos, televimos, tinha cor, luz, movimento e ação. Mexia-se, ondulante, empurrado pela centelha nervosa da liberdade. Arrancada num ímpeto, a carapaça coletivista não era mais que uma triste máscara. A imposta, a hipócrita impostura do arbítrio. Por trás da compulsória união imperial, lá estava a mãe-pátria irredenta, capaz de hibernar séculos e séculos, para não morrer. Sempre viva. Vital.
O que vem por aí, já se sabe e já se vê, não é fácil. Ninguém acorda de um pesadelo para a serena pachorra de uma ordem estabelecida. Criar, inventar, achar no presente o livre caminho do futuro, tudo isto dói. E custa caro. Tantos nascimentos povoam o ocaso deste século de espantos que já nada mais nos assombra. Até o Brasil pode despertar e tomar rumo. Sobretudo o Brasil, nossa melhor utopia.