Digamos que o leitor seja um desses otários que ainda fumam. Moços, a gente dizia que fumava pra fingir que é homem. Macho. Pela minha estatística do olhômetro, hoje as mulheres estão fumando mais do que os homens. Que é que elas querem provar? Enfim, na mão ou na boca de mulher tudo se aceita. Diz um amigo meu que em boca feminina até erro de português fica bem. Ele morre de satisfação quando ouve uma moça bonita dizer “pra mim fazer”. No caso, mim faz.

Se você fuma, digamos que esteja pitando o seu cigarro depois do cafezinho forte e quente. O bom moca dos velhos tempos, tomado em pé na rua, quando tudo era bom. Ou quando o mundo também era jovem, como nós. Você está tirando a sua última tragada. Aquela que desce pela árvore brônquica e, perfumada, se infiltra pelas vísceras e acelera o ritmo cardíaco. Chegaria à cauda, se você tivesse cauda para prolongar esse enfumaçado prazer.

Eis que passa um transeunte e esbarra na sua mão. O cigarro cai. A santa guimba. A baganinha acessa, que você ia levar aos lábios pela última vez. Talvez para beijá-la e agradecer esse fugaz momento de felicidade. Indeciso entre xingar o idiota que lhe deu o tranco e apanhar de volta a guimba, você opta pelo vexame de se abaixar e recuperar aquela baforada que falta. Mas é tarde. A bagana caiu na pocinha de água suja que só está ali para apagar a chama da sua modesta alegria.

Se nessa hora passar o Amaral Netto, você é capaz de desmentir as suas convicções mais arraigadas. O Amaral passa é lógico que com a sua ideia fixa. Deus nos livre de uma ideia fixa. Imagine uma ideia fixa que em si já não presta. Dizia o Machado que é pior do que um argueiro. Pior do que uma trave no olho. Pois você adere à pena de morte e aponta o réu que acaba de cometer o hediondo crime. Você vai buscá-lo pelo gasnete e o entrega ao carrasco, que é o mesmo Amaral.

Faço agora um corte para 1941. Bernanos escreveu nesse ano um belo artigo que a censura brasileira não deixou sair. Tendo visto de perto a guerra civil na Espanha, foi lá que Bernanos compreendeu que na sua maior parte os homens estão defendidos da crueldade apenas por um simples reflexo nervoso. Uma vertigem. Ultrapassado esse reflexo, a crueldade se torna agradável. E depois indispensável. E é a piedade que então parece estúpida e estéril, indigna do homem, desumana.

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