Como todo mundo, acompanhei pelos jornais o roteiro meio tumultuado da telenovela da venda da Rede Manchete. A falta de desfecho não tem importância. A obra é aberta, como é próprio do gênero. Um repórter a certa altura perguntou ao Cony o que havia de verdade no emaranhado daquela rede de intrigas. O Cony sugeriu que o repórter lesse um texto que há anos escrevi sobre o Adolpho Bloch ― “Começos de um delírio”.

Parodiando um título da Clarice Lispector, procuro dar aí uma ideia da fase Bloch anterior à revista Manchete e a tudo que veio depois. O Adolpho transformou em realidade todo o seu sonho, ou melhor, todo o delírio de que fui testemunha naquele ano remoto. Eu tinha ido procurá-lo na companhia de um jornalista que queria comprar uma velha máquina dos Bloch.

Uma boa porcaria, disse de cara o Adolpho. Meu amigo olhou o anúncio que trazia na mão: uma verdadeira maravilha a máquina. Sim, confirmou o Adolpho, mas um traste. Peça de museu. Nunca mais se fabricaria nada igual. Só tinha posto à venda porque era de fato uma joia. Aliás, por dinheiro nenhum venderia. O registro da cor saía perfeito, mas exigia duas entradas para quatro cores. Um atraso. O progresso tecnológico avançava em ritmo fantástico.

Arregaçando as calças como se evitasse pisar em invisíveis poças, repetia um refrão: dinheiro não é problema, não é verdade isto? Quem quisesse uma boa impressora, esperasse o que vinha da Alemanha. Já tínhamos visto os catálogos? Não? Então ia nos mostrar. Mas antes nos mostrava a oficina passo a passo. Ralhava com um, brincava com outro, íntimo de cada coisa. E de todos, que chamava pelo nome, enquanto examinava a qualidade do que estava sendo feito.

Voltamos à máquina plana, uma obra-prima que não prestava para nada. Cadê os catálogos? O Adolpho revirou a mesa, que ficava no meio das outras. Vamos tomar um café na esquina. Começou aí uma sessão de nostalgia sobre Kiev e a Aldeia Campista, onde os Bloch moraram assim que chegaram ao Rio. Depois o início de um poema de Pushkin em russo. Uma beleza, mas intraduzível. Em seguida me pediu um palpite para o bicho. Sugeri a borboleta. Tantos anos depois, não leio Pushkin no original. Mas entendo quase tudo na alma do Adolpho. Menos uma operação de venda.

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