Passamos um pelo outro e não nos vimos. Eu por mim não vagava absorvido nas obras de arte. Ele, é possível que sim. Nisto, damos de cara um com o outro. Há quanto tempo! Sempre sabedor, entendia também de pintura, o Severo. De que é que não entendia? Dali saímos para a noite boêmia. Era o tempo do bar do Jaraguá. Mais que jovens, todos os amigos estavam vivos.
Tinha este dom, o Severo: nele, os extremos se tocavam. Cessavam os contrastes. A boemia e a disciplina. O empenho no que fazia e o à vontade de quem sabia de graça. A vida pública o trouxe ao Rio. A princípio era meio complicado para quem não o conhecia entender o grão-senhor paulista. Liberal num governo autoritário. Memória privilegiada, a postos para qualquer amnésia alheia. O Manuel Bandeira na ponta da língua. Quem é? É o diretor do Banco do Brasil.
Não demorou e caíram-lhe aos pés os preconceitos. Ministro de Estado, já ninguém estranhava a sua competência. Do intelectual e do homem público. Um começo de surdez lhe dava aquele ar de interlocutor atento. Coração generoso, sua inesgotável misericórdia. Presos, índios, doidos, crianças. O sonhado Brasil. Estava a par de tudo. Na sua fazenda de São José, dormir era um desperdício. A conversa atrasava o sol.
Mário de Andrade, Oswald. Os dois Bastide. As Arcadas. A Bucha. A política estudantil. E a grã-finagem paulistana. Em Tóquio, no New Otani, esperamos mesmo o sol nascer. É o nosso Pico Della Mirandola, dizia eu. Do capim gordura ao Dante, nada ignora. Julga um zebu, uma pinga e um interesse nacional. Ele ria, inquieto, ágil. Tirei-o do Country um domingo de manhã. Veio de calção e se fechou no escritório. A privatização da Light. Amizade, a quanto nos obrigas!, disse ao sair. A gratuidade é que nos aproximava.
Seus arrancos de entusiasmo cívico. E o permanente bom humor. Lá fui eu conhecer o general Euler. Mobilizava um frade de pedra, o senador Severo. Sua integridade moral. O primeiro comício das Diretas Já começou com ele, aqui, na casa do Miguel Lins. Trouxe o Montoro. Iria dar certo? Se não desse, e daí? A pior provação, a trágica perda do filho, não lhe amesquinhou o coração. Um só coração, Maria Henriqueta e Severo. O casal casado. A homenagem aos mortos é não os esquecer. Esses não nos esquecem. E nos fazem a doce companhia de amigos. Agora eternos.