A que ilustra a capa do livro do Henfil é de um minudente hiper-realismo. Como se não bastasse, na dedicatória ele desenhou outra com o seu traço eloquente e sóbrio. E coloriu. De salto alto, busto exuberante, braços, tentáculos e olhos se arregalam. De pé, traz nas costas uma capa triangular que a torna mais sinistra. Entre as antenas, a linha vermelha de um coração com o meu nome. Decifra-me ou te devoro! — Desafia a legenda.
Não a decifrei, nem ela me devorou. O livro é o Diário de um Cucaracha. São as cartas que o Henfil escreveu de Nova York, entre outubro de 1973 e outubro de 1975. Documento espontâneo, textos escritos ao correr da pena, contém o registro de um encontro marcado por contrastes e arestas. O gênio do Henfil e a poderosa máquina americana. O menino de Bocaiúva, de Ribeirão das Neves, encara, mordaz, o gigantismo de Manhattan e Wall Street.
A galhofa começa pelo título e de cara escarnece do autor. Cucaracha é o próprio Henfil. O marginal que Nova York discrimina. A palavra castelhana quer dizer isto mesmo: barata. Ser humano e barata, identificados. Kafka, está se vendo, é um escritor realista.
Ou Nova York é uma cidade kafkiana. Antes e depois de acordar naquela manhã, Gregório Samsa é o mesmo homem. Ou o mesmo inseto. E Gregório seria de fato uma barata? De que família?
No ensaio que escreveu sobre A metamorfose, o Hélio Pellegrino não esclareceu este pormenor. Estudou o fenômeno da alienação. Bastava-lhe examinar o que chamou de a honra de ser inseto. Na capa do livro do Henfil, a barata provocou náusea e protesto. Até admiradores lhe viravam a cara. Livrarias chegaram a esconder o livro. Exibi-lo afugentava os fregueses. Não me chamem de machista se disser que espantava, arrepiadas, todas as mulheres.
Escusa explicar por que para o Dalton Trevisan a suprema abjeção é a barata com caspa na sobrancelha. Na outra ponta situa-se a experiência mística da Clarice Lispector. Por que o imundo é proibido? A paixão segundo G.H. é um passo hoje obrigatório da literatura universal. Mais do que dentro de casa, esquiva, asquerosa, a barata é a nossa fatal companheira de viagem. Inimigos íntimos, mais uma vez o calor nos aproxima, cara a cara. Quem tem medo de quem?