Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.
RIO DE JANEIRO — O que é uma associação de ideias: essa conversa sobre bicicletas tem para mim um forte sabor de infância. E acontece logo na véspera do Natal. Depois do velocípede, a bicicleta era mais que um sonho. Era uma obsessão que a gente sonhava 24 horas por dia. Um presentaço. Novinha em folha, vinha do Rio. Era como se viesse do Céu. Não era um garoto que subia ao selim. Era um príncipe, um reizinho.
Que menino não pensou um dia em voar? Pois a bicicleta voava. E voava baixo, ao nível dos espectadores. Todo o vocabulário vinha imantado pelo sortilégio que só a poesia tem: guidom, quadro, pedal, corrente, catraca. Quem não sabia andar de bicicleta estava atirado às trevas exteriores. Excluído do mundo encantado. Podia não ser um feliz proprietário. Mas não saber andar, ah, isto nunca! Bom era andar "sem mãos". Ou de pé. Ou de costas. Mil acrobacias.
Não sei em que vai dar essa gritaria toda. Pode ser até que saia um gol de bicicleta. Mas não vou morrer de espanto se, vistos e revistos os autos, tudo acabar no tradicional silêncio que sucede o alarido e a festa. De qualquer forma, já há lucro a registrar. E até um enriquecimento (lícito) do vocabulário, com a circulação de palavras como "ciclovia" e "bicicletário". Ao lado dos neologismos, voltaram as casas de aluguel. Até parece que estamos em Cuba. Ou na Holanda.
É de 1946 o livro Poemas, sonetos e baladas, com vinte e dois desenhos do Caloca, o Carlos Leão. É nele que está a "Balada das meninas de bicicleta". Do Vinicius, claro. Homem de sorte. Tinha uma fobia: medo de ser enterrado vivo. Daí a sua outra balada, a do "Enterrado vivo". Mas que nada! Morto, cá o temos de volta, vivíssimo no comercial da televisão. Milagre do computador. Ao lado do Tom e do chope, como nos velhos tempos. Só falta falar. Perdão, não só fala, como canta.
Saudades dos passeios de bicicleta que inspiraram a balada do Vinicius. Num surto de infância, saíamos do Posto Cinco e íamos até o Leblon. O poeta, Rubem Braga, Moacir Werneck de Castro, Paulo Mendes Campos. Eu também, claro. Havia moças, mas a data remota manda lhes calar os nomes. "Bicicletai, meninada" – concita o Vinicius, nos seus "trint'anos", como diz. Curioso é que há versos que permitem uma leitura atual quase profética. Senão leiam: "Bem haja a vossa saúde/ À humanidade inquieta/ Vós cuja ardente virtude/ Preservais muito amiúde/ Com um selim de bicicleta". Viu tudo, o Vinicius.