23 out 1992

Calma, isso passa

Periódico
Folha de S.Paulo

Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.

Acordou com uma dorzinha esquisita. Não latejava. E também não era pontada. Era dor nova. Com as velhas, se entendia bem. Companheiras cordiais, têm hora marcada. Nada de surpresa. Amiga, uma dor conhecida é como um lembrete. Olhe, você está vivo. Hipocondríaco? Nada disso. Apenas se cuida. O Fulano, sim. Se lesse uma bula, pegava na hora todos os sintomas. Até anúncio lhe dava cólica.

Esse de fato vivia inventando novidade. A partir de certa altura, todo dia, uma dor nova, dizia. Se você amanhece sem uma dor novinha em folha, desconfie. Chame o socorro enquanto se mexe. Cultivava especialista de todas as áreas, sempre a par das conquistas da ciência. Lia, indagava. Pioneiro na divulgação dos efeitos milagrosos da vitamina C. Escreveu ao dr. Linus Pauling. Queria uma entrevista. Comunicar o seu caso, espontânea cobaia.

Se o tivesse encontrado, teria descrito sua experiência. Uma polidipsia de fundo emocional. Bebia água sem parar. Que nem um animal. Que nem um cavalo de polo. O cavalo bebe 70 litros de água por dia. Guardada a proporção com o peso, não andava longe. Compulsão horrível. Chegou um ponto em que não podia sair de casa. Primeiro, garantir a boa qualidade da água. Depois, assim como bebia, vertia. Um verter sem conta, constrangedor.

Pois lendo o dr. Pauling é que ficou bom. Se o paciente não ajuda, o médico tateia no escuro. Quem sabe de si é o doente. É ele quem dói. Quem se cura também é ele. O Fulano dosava a pesquisa de ponta com a medicina popular. Olho vivo no último prêmio Nobel e na velha mezinha caseira. O chazinho da vovó e aquela bateria de frascos americanos. Um deslumbre. Terapias? Todas. Das flores de Bach à aromática, passando pela cromoterapia do dr. Stobbler.

O Fulano? Pois é. Um belo dia, belo mesmo, acordou um atleta. Nenhuma dor. No almoço, caiu fulminado. Raio no céu azul. 49 anos de idade. Mal começava a conhecer o próprio organismo, coitado. Estava escrito. Talvez no código genético. E depois, aquela obsessão por doença. Quem procura acha. Você marca, paga a hora e quer sair na mesma? Tem de achar. Eis aí. Divagando em torno da hipocondria do Fulano, acabou esquecendo a tal dorzinha esquisita. Passou. Voou como um passarinho.

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