Veio menina para o Brasil. Algumas lembranças, poucas, às vezes se confundiam no seu espírito. Isto assim-assim tinha acontecido aqui ou lá? E também sonhava com uma paisagem que não era brasileira nem holandesa. Quando a mãe morreu, cortou para sempre o cordão umbilical com a antiga pátria. Deixar de bobagem. Apesar dos olhos claros, do cabelo puxado a amarelo, da altura batendo no metro e 74, era brasileira da gema.

Mãe, pátria, língua, só uma. Nem duas, nem três. Muito menos uma e meia. O que sai da unidade só traz confusão. Atropela a identidade, num split que já não é saúde. E pode ser o começo do desequilíbrio, da instabilidade emocional. Por decisão voluntária, apagou da memória palavras e frases holandesas que a acompanhavam desde o tempo em que começou a falar. Era preciso ser uma pessoa só, por inteiro plantada aqui.

Casou, teve uma filha, foi mais ou menos feliz como todo mundo. Como todo mundo, de repente estava inquieta. De inquieta a insolúvel foi um passo. O marido brasileiro, 12 anos mais velho do que ela, concordou com a separação. Claro, continuariam amigos para sempre. E amigos teriam ficado, se ela não descobrisse a prova insofismável de que ele já estava na dele muito antes da separação. Ela vinha com o milho e ele voltava com o fubá.

Foi quando lhe apareceu a oportunidade de se mandar para a Holanda. O país de fadas existia. Existia o espaço para ser feliz. Ver a filha crescer, refazer a vida. As duas tias, que já conhecia de uma longa temporada de férias, a recebiam de braços abertos. Uns amores. Bem alimentadas, sólidas, eram o próprio seio materno. A muter rediviva. O regaço. A perfeita estabilidade, com emprego, seguro saúde, moradia. Absoluta segurança. A vida que milhões de brasileiros pediram a Deus.

Até que outro dia veio a carta. Não aguentava mais fingir de feliz. Passeava, sim, todo dia no parque. Mas no parque de cara fechada, que nem verde é. É preto e branco. Todo santo dia esbarrava no parque com as mesmas três pessoas. Na rua e em casa, faltava luz. Faltava sol. Afinal se abriu com a filha e as duas descobriram que só pensavam na volta à bagunça do tecnicolor brasileiro. Fez as malas, deu adeus à paz do primeiro mundo e está de volta ao calorento reino verde-amarelo. Para sempre. E seja o que Deus quiser.

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