Modesto, de parcos, quase nulos, recursos intelectuais, o padrezinho tinha um histórico escolar apagado. Mediano, diziam os seus colegas caridosos. Medíocre, insignificante, confirmava a opinião isenta. Nem se podia explicar como chegou a ser ordenado. Talvez pela humildade. Mas por que seria orgulhoso? Teria orgulho de quê, uma pessoa assim tão nula? Além do mais, nem ao menos fisicamente saudável. Era antes enfermiço, doente profissional.

Pois assim mesmo, lá foi para a distante paróquia, no fim do mundo. Lá onde o vento vira, pouco depois de onde Judas perdeu as botas. Poucas ovelhas, se ovelhas houvesse, na certa estariam tresmalhadas. O bom vigário teria de trazê-las de volta ao aprisco. Sim, pelo menos isto logo se tornou patente. Era um bom homem. Manso de coração, simples, com uma aura que podia vir de sua nulidade. Da falta de dotes intelectuais.

Esquecido de todos, ninguém mais se interessou pelo seu destino. Anos se passaram sem que se soubesse que o vigariozinho tinha granjeado fama de bom pregador. A tal ponto que recebia convites para pregar noutras freguesias da região. Igualmente obscuras, uma delas se distinguia pelo desamor à verdade. Sem exceção, os fiéis eram ali um monte de embusteiros. A mentira impregnava o ambiente. Tinha penetrado no sangue daquela gente. Tudo neles era falsidade e falácia.

O vigariozinho chegou, disse umas poucas palavras de saudação no seu coloquial singelo. E anunciou: no dia seguinte, ia falar sobre a mentira. Os ouvintes mal contiveram o sorriso de mota. Peço a todos, disse o padre, que leiam antes o capítulo 17 de São Marcos. É fundamental para o que lhes vou dizer. 24 horas depois: levantem-se os que leram o capítulo 17 do Evangelho de São Marcos, tal como recomendei. Todos, como um só homem, se puseram de pé.

Estou certo agora, disse o orador com o seu fio de voz, que vocês são mesmo os ouvintes que procuro. Pois o capítulo 17 não existe. Marcos só tem 16 capítulos. Dito isto, o leitor já terá percebido que o Brasil oficial de hoje está como essa paróquia. A mentira borbota de todo lado, por todas as formas. Está na hora de pôr um ponto final na impunidade. E o que importa agora é que a solução da crise não se faça com base no capítulo 17 de São Marcos. Ou seja, que saia, estrita, do que prescreve a Constituição.

otto-lara-resende
x
- +