Não, pelo amor de Deus, não me compreenda por esse caminho errado. Se tenho sido o meu tanto cruel com as crianças, é só na ficção. Longe de mim propor, ou sequer sugerir, tamanhos e tais castigos. Se me leu, tresleu. Sei como foi na Inglaterra vitoriana. Haja vista o David Copperfield. Sim, podia ser autobiográfico. Uma forma do Dickens contar os maus-tratos que sofreu. Eram usos e costumes.

O cruel padrasto de David é páreo para qualquer monstro que esteja na retaguarda de um dos nossos meninos de rua. A crueldade não foi inventada agora. Tampouco é monopólio do Brasil, que todavia se orgulha de ser uma nação cordial. Outro dia, por exemplo, fecharam aqui no Rio uma escola para excepcionais. 300 crianças atiradas à rua. A verba oficial está suspensa desde janeiro. Dá-se um doce a quem adivinhar aonde foi parar esse dinheiro.

Aí, sim, se a gente deixa correr a emoção, dá vontade de aplaudir qualquer castigo. Tudo, menos a impunidade. Mas não terão sido os castigos vitorianos que sanearam a vida pública inglesa. Estimularam, isto sim, a hipocrisia. E lá também há escândalos e abusos. Até na família real. De resto, se lá havia açoites, aqui não ficávamos longe desse tipo de escaldadela. Na ficção e na realidade, numerosos depoimentos desmentem a nossa cordialidade.

Veja o que conta o Graciliano Ramos. Está no seu magistral Infância. Leia o capítulo “Um cinturão”. O menino tinha quatro ou cinco anos e já era réu. “As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão”, diz o Velho Graça. Onde estava o cinturão? A pergunta ecoou na sensibilidade do escritor para o resto da vida. Até o David Copperfield diante disto é capaz de ficar no chinelo.

Leia o que diz a Clara Ramos sobre a “bárbara educação” que era corriqueira nas Alagoas de seu pai. Nos colégios ingleses, a cada malfeito correspondia um castigo. Dos crimes, o roubo era o mais grave. Significava palmatória ou vara na certa. Uma boa sova de inchar as mãos. Ou de lanhar as costas. Não sei até onde castigos assim contribuíram para fazer do Graciliano o severo prefeito que foi em Palmeira dos Índios. Sei que foi um exemplo moral. Roubar? Nunca! Nanja! E renunciou dois anos antes de completar o seu mandato. Era um caráter, o Velho Graça. E um exemplo. Quem sabe oportuno.

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