Pode-se dizer sem erro, que ainda que sem o exagero da exploração demográfica de hoje, o povo, povo mesmo, povão, só apareceu em 1930. Antes, estava por aí, escondido na senzala das poucas favelas, no campo latifundiário, nos pés descalços da miséria não tão ostensiva, porque ainda meio envergonhada. Como o povo, o século 20 também só deu entrada no Brasil em 1930.

Se foi com a Revolução ou não, é uma controvérsia para historiadores. Ou para intelectuais. Em 1930, o Brasil era e, pelo jeito, pretendia continuar sendo para sempre, o país do café, ou seja, da monocultura e quase ainda do trabalho escravo. País essencialmente agrícola, como se dizia, vivia da exportação de um produto de sobremesa.

Nesse mesmo ano tão denso e marcante de 1930, um rapaz de 18 anos se aventurava, com a força de seu talento, a contar a sua primeira história. Já vinha preocupado com o Brasil, país do carnaval. O rapaz, está se vendo, era Jorge Amado. O livro de estreia era O país do carnaval. Até no título trazia uma nota meio galhofeira, meio sarcástica. Era o primeiro arroubo de protesto, cheio de uma inconformada juvenilidade auriverde, como estava na moda.

Dois anos antes, em 1928, José Américo de Almeida apareceu com a denúncia do seu patinho feio — A Bagaceira. Era o primeiro passo do Ciclo do Nordeste, a que logo viria se juntar a adolescente Rachel de Queiroz, seguida por Amado Fontes, José Lins do Rego, Graciliano Ramos. E, em 1931, o próprio imberbe Jorge Amado. Vagamente filosófico ligado à ebulição que ia pela Faculdade de Direito no Rio, o novo romancista apareceu pelo editor e poeta Augusto Frederico Schmidt. Quem primeiro o leu foi Tristão da Cunha, um estilista ático da vertente machadiana. Leu-o e se encantou não só pelas qualidades, mas até pelos defeitos. A partir daí, Jorge Amado seria uma presença constante não apenas nas letras, mas na vida do Brasil. Vida cultural, vida política. Vida em todos os sentidos. O seu vigoroso sopro épico incorporou-se logo à esquerda ideológica, que o encaminhou à militância partidária. Se seguisse um roteiro previamente feito para um curso completo de brasilidade, não faria melhor percurso do que vem fazendo esse numeroso Jorge Amado. Compelido a uma disciplina sectária, contra a natural tendência de seu temperamento, Jorge conheceu a prisão, o exílio e a censura. Não lhe faltou nem a luz de uma fogueira para queimar seus livros subversivos.

A partir da matriz baiana, a partir da saga do cacau, Jorge Amado percorreu um longo caminho. Com uma obra extensa, inesgotável manancial de histórias, ele é um caso único na literatura brasileira. Nem sei se há exemplos em outra literatura. Um fenômeno, que se estende por mais de 60 anos e que espanta por muitas e contraditórias razões. Como é que Jorge Amado conseguiu ser Jorge Amado? Loquaz, ele não se faz de rogado quando lhe pedem para falar — de si ou dos outros. Sua generosidade é inestancável. Mas nem Jorge Amado explica Jorge Amado.

Creio que ele tem um segredo que é, nessa rica natureza de artista, um segredo público. Seguinte: ele nunca está só. Ninguém consegue pensar em Jorge Amado sem pensar na multidão de seus personagens, que enriqueceram o registro civil tanto, ou mais, do que o fez Balzac. Enunciar o seu nome é chamar por um monte de gente, a começar pelos que povoam o seu coração frondoso — a amada Zélia, os filhos, os amigos de sangue. E os amigos que, não o sendo pelo sangue, vêm de todos os sangues, no Brasil e fora do Brasil, na América Latina, na Europa, no mundo. No Norte e no Sul, no Ocidente e no Oriente.

Jorge é por natureza uma personalidade comicial. Só o heroísmo que a fatalidade de uma poderosa vocação impõe pode explicar a fantástica obra que hoje temos diante dos nossos olhos. Bastam os originais em português, pondo de lado as milhentas traduções, para formar a mais alta montanha da cordilheira literária nacional. A gente se pergunta como é que Jorge conseguiu se isolar e escrever, no tumulto de sua vida, o exuberante caudal dessa obra romanesca. Catedralesca. Homérica.

Não vou encarreirar aqui nomes e alcunhas do povão que saiu de suas entranhas e ganhou vida pelo gênio de seu sopro criador. Força da natureza, Jorge Amado tem as exorbitâncias e as energias do Brasil. Desse povo que apareceu em cena em 1930 ninguém dá melhor a mais completa notícia do que a sua obra portentosa. Notícia também festiva, a que ele deu a dimensão de um estar-de-bem-com-a-vida que é um dos traços mais típicos do caráter brasileiro.

Por isto, porque o Brasil é visivelmente brasileiro por obra e graça de Jorge Amado, é possível cantar. É possível dizer cantando o que está nas dobras da alma brasileira. Jorge Amado é um ponto de referência. Um polo de atração. Uma fervilhante esquina em que todos se encontram. Uma praça pública. Aí não estão apenas os seus contemporâneos, como o fabuloso Dorival Caymmi. Aí estão os seus predecessores, como o condor Castro Alves. E aí estão os que chegaram depois. Os que vêm vindo, como o poeta, compositor e cantor Caetano Veloso.

Jorge aos 80 anos e Caetano aos 50, somados, ou cada um de per si, são a sólida certeza de que o Brasil existe. E resiste. De que o povo apareceu não apenas para fazer figuração, mas para participar. De 1930 para cá, o Brasil andou muito, apesar dos pesares. Do País do carnaval à Tropicália, um robusto país se afirmou e ganhou dimensão internacional — pelo menos na voz de seus intérpretes mais genuínos. Aos trancos e barrancos, ou não, melhor não, vamos caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento — e à luz desse profeta que aos 80 anos nos dá uma lição de sabedoria e um exemplo de fé no bom convívio dos homens. Na missão do Brasil.

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