Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.
A praça se chama Sagrada Família. Se está pensando que eu inventei, pode passar lá e ler a placa. Hélio Pellegrino e eu nos sentávamos num banco de manhã e tome conversa fiada. Ele gostava muito de distinguir os vários verdes das folhas. Um dia, mal nos levantamos, veio um carro enlouquecido, entrou pela pracinha adentro e se espatifou no banco aos nossos olhos. Fomos salvos por alguns segundos. Práçassa Grada Família, brincou Hélio. E se persignou.
De manhãzinha, há tempos, eu ia passando quando ouvi um grito: ô gente boa! Era uma menina enfezadinha, seus 13 anos. Vai um café na padaria? Eu não podia negar, podia? Paguei o café para uns quatro ou cinco do bando. Trazia comigo jornais e revistas. Era domingo. Você vai ler isso tudo? ― me perguntou um, mais taludo. Outro quis saber quanto custou. Sim, esbanjo dinheiro com bobagem.
Outro dia, vou indo distraído. Agora, pelo Natal. Na praça ouço um alarido festivo. O mesmo bando que já vi dormindo, o sol de fora. Também com chuva. Neste caso, se abrigam debaixo da marquise da agência bancária. O grupo está mais numeroso. E sumiu a criançada de família com as babás. São meninos de rua, sim. Uns já adolescentes e até nutridos. Barulhentos, falantes, em movimento, como uma revoada de pombos disputando milho. Milho? Um baita bolo de chocolate. Apetitosíssimo, servido em prato de cristal.
Palavra de honra. Fui ver de perto. Uma linda moça de seus vinte e poucos anos. Vi depois o jovem marido à distância. Aprovava sorrindo a extravagância. Puxei conversa. Como é que é a resposta? São simpáticos, brincalhões. Agora acabou, disse ela alto, com autoridade. Alguns ainda comiam escondido, se lambuzavam de chocolate. Uma garotinha tentava esconder o seu pedaço na sainha rasgada. À noite, me disse a moça, tenho medo. Nunca se sabe, né?
A narrativa está em Lucas 2, 7.12. Não havia lugar para eles na estalagem. Maria enfaixou o seu filho e o reclinou em uma manjedoura. Manjedoura é um tabuleiro em que se dá comida aos animais. Por sinal, lá estavam o burro e o boi. Era de noite. Noite feliz, noite ditosa. Agora é de manhã e faz calor. Me lembrei do auto da Cecília Meirelles: “Levamos cocadas, / levamos cuscuz / e bolo de milho / pra dar a Jesus”. Na esquina, antes de dar o braço ao marido, a moça acenou para o bando. E sorria, feliz.